[Matéria] As origens de Robin Hood

 



A crítica literária não consiste apenas em apontar qualidades e defeitos, mas em comparar discursos e recursos chegando sempre a um terceiro termo. A crítica deve apontar soluções e não problemas. A crítica da arte também é arte, na medida em que estuda e experimenta a interpretação. Nesse contexto, a crítica representa a terceira interpretação de um conflito, na medida em que supera e compreende dialeticamente os opostos da unidade dos contrários. 

Esse é um pensamento que norteia a maioria dos estudos a respeito das origens de Robin Hood, heroi nacional de importância cívica comparável à do Rei Arthur e a Távola Redonda. Sua existência é incerta e ainda levanta debates entre historiadores. 

Mas para quem vive em Nottingham, cidade inglesa onde Robin supostamente existiu, o mesmo continua a existir. Na referida cidade, situada no centro da Inglaterra, temos, estátuas e ruas batizadas em seu nome, além de um festival anual que lhe é dedicado. Também há a floresta de Sherwood, na qual a figura lendária se reunia em conselho. 

Caso tenha realmente existido, acredita-se que isso possa ser confirmado com o autor de sua primeira balada. O heroi bandido perseguido pela justiça que caçava livremente pela floresta e roubava dos ricos para dar aos pobres desafiava o poder, mas encantava ao povo. Naquele contexto, as primeiras baladas a ele dedicadas representaram uma expressão poética das aspirações populares durante um período histórico de injustiça e rebeliões. 

Esse período histórico é situado entre 1160 e 1220.  A Inglaterra vivia sob o reinado da dinastia Plantageneta durante as cruzadas. Durante o período, reinaram Ricardo Coração de Leão e João sem-terra. Durante os seus reinados, foram criadas a Carta Magna e a Câmara dos Lordes, primeira constituição e primeiro parlamento modernos respectivamente. À época, diante da centralização do estado absolutista, a qual se deu por meio da constituição de um exército regular e em meio a cobrança de altos impostos, a nobreza estabeleceu limites orçamentários e políticos para a tomada de decisões pelo rei João.

Foi um período caracterizado pela fome e por revoltas populares nas principais cidades inglesas. Na Inglaterra, não houve uma revolução burguesa como na França, em que a burguesia 'roubava' dos nobres e do clero atrás de serviços e comércio e 'dava' as migalhas para os trabalhadores. Em muitas representações artísticas da lenda, Robin Hood encarna o papel da burguesia ascendente como classe social, a passagem do absolutismo feudal para a monarquia parlamentar e a assimilação dos novos ricos às classes dominantes. 

A lenda surgiu no século XIII e foi contada inicialmente a partir de baladas, poemas líricos cantados na Inglaterra do século XIV. Em meio às tensões sociais mencionadas no parágrafo anterior, Robin Hood representava um modelo de bandido justiceiro que distribuia a riqueza dos ricos dando-as aos pobres. 

O primeiro texto preservado data do século XIV. Baladas são um gênero sobretudo oral. As baladas sobre Robin Hood foram um sucesso, foram passadas de geração em geração, seus detalhes evoluíram ao longo do tempo até que alguém decidiu fixá-la por escrito. No século XVI, com o advento da imprensa, as baladas se multiplicaram. Elas cresceram e a partir disso Robin Hood adquiriu novas faces.

Howard Pyle sistematizou a versão popular da história, a qual introduziu os companheiros de Robin em historietas em que os personagens se conhecem e, após uma disputa, se tornam amigos. O livro conta em oito partes como Robin Hood se reuniu com um bando de homens alegres que só roubavam de nobres arrogantes e clérigos abastados.

Já na versão aristocrática, o heroi passa a representar uma parte da nobreza que fazia oposição ao rei déspota e não mais um homem do povo. 

O sucesso da balada esteve relacionado a forma como as pessoas se identificavam com o personagem. Para Eric Hobsbawn, o tipo de bandido que Robin Hood era apresentado pelas baladas incorporava o ideal do bandido justiceiro típico do campesinato livre, algo semelhante aos cossacos na Rússia e dos Haidouks na Hungria e nos Balcãs. 

Com relação à versão da nobreza, James Halt afirmou que as histórias do fora da lei foram concebidas nos lares aristocráticos, refletindo mais o descontentamento da nobreza que o do campesinato. Para outros historiadores, a mentalidade de Robin Hood está vinculada às fraternidades e corporações artesanais das cidades pequenas, ou, de modo geral, a uma classe média de plebeus e camponeses apanhados entre o declínio do feudalismo e o capitalismo emergente.

Stephen Knight, a exemplo de outros historiadores contemporâneos, não atribui o surgimento de Robin Hood a um contexto social único, mas considera que Hood sempre incorporou um sonho de resistência à autoridade.  

No final do século XVIII, após as baladas, romances e peças antigas serem coligidas e reimpressas por Joseph Ritson, Robin Hood finalmente entrou na literatura. Ritson forneceu material para Walter Scott escrever Ivanhoé, o primeiro livro do romantismo histórico como movimento literário, o qual apresentava o Robin Hood da versão popular desempenhando um papel secundário. Também forneceu material a Alexandre Dumas para que o mesmo escrevesse romances sobre o heroi social/bandido: O príncipe dos ladrões (1872) e Robin Hood, o proscrito (1873).

Personagem de domínio público com uma reputação  estabelecida, Robin Hood se tornou atraente para o cinema, a televisão e as histórias em quadrinhos. Nelas, face a impossibilidade de comprovar a existência histórica de Hood e à existência de duas principais versões da narrativa, os filmes retratam diversas visões da lenda. Os filmes mais antigos enfatizam o contexto histórico da narrativa.

Os filmes recentes apostam na estética de 'game' e elenco de qualidade. Em contrapartida, os filmes mais recentes tentam popularizar Robin Hood como bandoleiro, distanciando-o da nobreza e da coroa. Enquanto os filmes antigos subscrevem o ideal heroi burguês, os recentes veem em Robin Hood um eterno rebelde, destinado a lutar contra o poder para sempre, havendo uma naturalização da luta de classes. 

Ambas as versões sobre a lenda de Robin Hood se passam em um contexto histórico de não muito tempo da Conquista Normanda da Inglaterra, cujas consequências ainda eram visíveis. Além da substituição a força de uma elite governante por outra, vimos uma mudança na arquitetura do país, sobretudo nos seus castelos, e no seu clero. Houve, também, alterações na lei, uma das quais repercutiu diretamente sobre as histórias hoodianas: caçadores ilegais eram severamente punidos e perderiam os olhos ou seriam mutilados caso pegos. 

A apresentação de "As Aventuras de Robin Hood", de Alexandre Dumas, introduz-nos às suas obras sobre Robin Hood contextualizando-as no referido cenário. Resenha no próximo post. 


REFERÊNCIAS:


DUARTE, Fernando. Robin Hood: ele existiu de verdade? Aventuras na História, 2018. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/reportagem/robin-hood-lenda.phtml>

FRANCO, Luís Henrique. Robin Hood: a lenda em todas as suas formas. Clapper, 2018. Disponível em: <https://www.clapper.com.br/artigo/robin-hood>

GOMES, Marcelo Bolshaw. Robin Hood: O Arquétipo do Bom Ladrão. Academia.edu, 2018. Disponível em: <https://www.academia.edu/37978939/Robin_Hood_O_MITO_DO_BOM_LADR%C3%83O#>

MIYARES, Júlio Ruben Valdés. Robin Hood Existiu? Circuito Ubu, 2019. Disponível em: < https://circuito.ubueditora.com.br/robin-hood-existiu/#:~:text=Em%20meados%20do%20s%C3%A9culo%20XIX,a%20floresta%20cansado%20da%20corte. >




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