[Resenha] Menino de Engenho - José Lins do Rêgo
Sinopse: O
romance de estreia de José Lins do Rego apresenta fortes traços
autobiográficos. A obra relata a vida no Engenho Santa Rosa, com suas
desigualdades e a permanência de traços da escravidão. Com uns quatro anos de
idade, Carlinhos vê sua mãe estendida no chão, e “o pai caído em cima dela como
um louco”. Órfão de mãe e separado do pai, que será internado num hospício, o
menino é conduzido ao engenho do avô. O engenho Santa Rosa, situado na zona
canavieira à margem do Paraíba, é uma espécie de mundo novo que contrasta com a
cidade. Lá, a vida, as amizades da infância, o contato direto com a natureza, a
precoce iniciação sexual, a convivência com personagens que moram e trabalham
na casa-grande e na antiga senzala, tudo isso é evocado por um narrador que
conheceu profundamente um pedaço de um Brasil arcaico, cuja herança
escravocrata ainda é latente. O lirismo é uma das principais características de
Menino de Engenho, que abrange a infância e a adolescência de Carlinhos,
personagem central do livro.
Opinião: "Menino de Engenho"
No
município paraibano de Pilar, nasceu em 1901 o escritor José Lins do Rêgo. À
época, há pouco ocorrera a abolição da escravidão. Resquícios de uma sociedade
escravista ainda repousavam sobre o solo brasileiro, embora somente a partir de
1930 a centralidade de sua participação na formação história do país tenha sido
reconhecida. Naquele contexto, o mundo rural do Nordeste ainda era ligado às
senzalas e ao mundo dos senhores de engenho.
Nesse
cenário, José Lins do Rêgo lançou em 1932 “Menino de Engenho”, o seu romance de
estreia. A recepção da crítica foi feita com entusiasmo e a primeira tiragem da
obra, custeada pelo próprio autor e contanto com dois mil exemplares, foi rapidamente vendida no Rio de Janeiro. A obra
é considerada a mais autêntica do autor e possui como inspiração as suas
memórias acumuladas durante a infância enquanto viveu no engenho do seu avô
materno.
Aos
quatro anos de idade, Carlos perde a sua mãe. Ao acordar, o garoto se depara
com várias pessoas no quarto dela. Entrando lá, a vê ensanguentada e logo
é afastado do local. Foi o seu pai o responsável pela morte. Três dias após o
incidente, Carlos é levado ao engenho de seu avô materno. Eis quando o enredo
da história tem o seu início.
“Menino
de Engenho” é narrado em primeira pessoa. A história possui um tom
autobiográfico. Nela, vemos José Lins do Rêgo transformando a sua biografia em
um romance. O autor desenvolve as memórias do narrador com uma riqueza de
detalhes que lhe imprime grande força de realidade.
A
sua escrita não exige grandes esforços para ser compreendida. A narrativa é bem
agradável, eu diria. Passado e presente se intercalam sem que haja uma
demarcação explicitada pelo autor, requerendo um maior grau de atenção do
leitor para que ele não se perca quanto ao enredo. Além disso, acontecimentos
narrados em um capítulo não necessariamente possuem relação com os narrados em outros
capítulos.
Por
seguir a temática regionalista da Literatura brasileira, o romance de José Lins
do Rêgo pode ser enquadrado na geração de 30. Contudo, “Menino de Engenho”
possui características que o tornam singular perante outros livros de seu tempo.
Enquanto a maioria escritores da geração de 30 enfatizaram a natureza em
detrimento do homem, José Lins do Rêgo rompeu com essa tendência.
No seu primeiro romance, o interesse paisagista
se perde e a natureza não apresenta apenas uma função decorativa, mas a de constituir o ambiente no qual os personagens se fixam. Ela opera como um testemunho atmosférico
para a história, exercendo influência sobre o seu enredo.
Em “Menino
de Engenho”, é possível notar a influência do contexto sócio-político sobre a
construção do enredo. Ele se passa em um local ligado ao passado e à tradição
escravista e tem o campo de cana e a casa-grande como figuras essenciais ao
curso da história. No século XVI, ocorreu a implantação da cultura da
cana-de-açúcar e a dominação portuguesa fixou raízes no brasil.
A partir do
século XVII, a zona açucareira do Nordeste foi o polo econômico mais importante
do Brasil. Em torno da lavoura canavieira, ocorreu a formação das primeiras
formas estáveis de colonização, do tipo patriarcal baseado no latifúndio e no
trabalho escravo. Também foi em torno dos engenhos que se instituíram as
relações sociais do Brasil na época.
Diversos
fatores estão associados à decadência desse modo de produção. O fim do tráfico
de escravos ocorreu em 1850, promovendo o encarecimento da mão de obra. Em
1888, após a instituição de diversas leis antiescravistas, finalmente ocorre a
abolição da escravidão. No ano seguinte, ocorreu a ruína do império brasileiro.
Em meio a
esses acontecimentos históricos, outras regiões do país demonstraram ser
promissoras. Enquanto o ciclo da cana encontrava-se em franca decadência, a
região Sul do país gozava de um intenso crescimento econômico com a economia
cafeeira deslocando a hegemonia econômica do Nordeste para o eixo Rio de
Janeiro – São Paulo.
Nesse
cenário, ocorre a falência de engenhos e a indústria se une com a agricultura
para a formação de usinas. A oligarquia açucareira decante passou a ter
representantes intelectuais na Literatura regionalista e a burguesia paulista, que se mostrava próspera com o processo de industrialização, passou a
influenciar o Modernismo.
É sob esse
contexto sócio-político que José Lins do Rêgo concebe “Menino de Engenho”. O
autor acreditava que a Literatura regionalista pouco tinha a ver com o
movimento modernista e era um ferrenho crítico de “Macunaíma” de Manuel de
Andrade, embora não fosse antipático a todos os autores do Modernismo.
José Lins
do Rêgo fez parte de um grupo intelectual no qual fez grandes amigos. Um deles
foi Gilberto Freyre. Em “Menino de Engenho”, é possível notar grande influência
das ideias do sociólogo sobre a construção do enredo. A primeira geração
republicana, que se estendeu de 1889 até 1930, não pôs em evidência a
centralidade da escravidão na construção da História da nação.
Foi somente
em 1933, com a publicação de “Casa-Grande & Senzala” por Gilberto Freyre, que a questão da escravidão passou a ser utilizada para explicar o Brasil. À época,
havia uma atmosfera de negativismo e até de revanchismo entre as classes
conservadoras e os afro-brasileiros. A elite chegou a defini-los como uma
antítese do progresso nacional.
Havia
grandes dificuldades de falar sobre a escravidão. Até mesmo os antirracistas
tinham dificuldade em se manifestar a respeito. Eis por que Gilberto Freyre foi
tão importante. Ainda que de modo conservador, ele pôs em destaque a
centralidade da escravidão na formação da sociedade brasileira. E foi, também,
um dos mentores da Literatura regionalista.
Influenciado
pelas ideias de Gilberto Freyre, José Lins do Rêgo abordou diversas temáticas
importantes em seu primeiro romance. “Menino de Engenho” apresentou enormes
marcas da escravidão. A relação entre o negro liberto e a casa-grande
apresentada na obra foi de submissão e gratidão, ao passo que o narrador
mostrava encantamento pelo universo dos antigos escravos.
A liberdade
das crianças negras tinha o fascínio de Carlos. Os contratos sociais entre o
menino da casa-grande e as crianças descendentes de escravos foram muito bem
abordados. As relações entre o senhor de um engenho com os de outros engenhos
também foram ilustradas.
Africanos
vieram ao Brasil para viver sob um regime de trabalho compulsório. Ao se
libertarem dessa condição, houveram de enfrentar uma grande sorte de desafios. Devido
ao fato de a participação da escravidão na formação da sociedade brasileira
haver sido negligenciada antes da publicação de “Casa-grande & Senzala”, na
obra de José Lins do Rêgo aqui resenhada é possível notar resquícios de uma
sociedade escravista.
Como diria
Machado de Assis, uma obra é fruto de seu tempo. “Menino de Engenho” trouxe
consigo as alterações vividas pela sociedade. Em sua infância, Carlinhos,
protagonista da história, enxergava com estranheza os meninos da bagaceira. Embora
notasse desigualdades entre ele e as crianças descendentes de escravos, não as
condenou e chegou a usar como justificativa para isso o fato delas também não
condenarem.
Assim
percebemos uma ilustração do conceito do homem cordial atribuído por Sérgio Buarque de Holanda aos brasileiros. A desigualdade e a subalternidade presentes nas trocas
entre partes desiguais na sociedade brasileira levaram a uma relacionamento
íntimo entre pessoas pertencentes a diferentes classes sociais.
Durante a
escravidão, formas de resistência por parte dos escravizados eram comuns. Após
a sua abolição, injustiças sociais persistiram, e formas de resistência a elas
também. José Lins do Rêgo trouxe em Domingos a personificação da resistência à
autoridade do senhor de engenho.
É comum ao
texto literário integrar elementos sociais e psíquicos. Podemos enxergar essa
integração nos romances desenvolvidos em “Menino de Engenho”. Já nos primeiros
capítulos são narradas cenas em que Carlinhos se apaixona pela sua prima.
Infelizmente, ela não tarda a morrer.
Também é
retratado na obra o rito de iniciação sexual dos meninos brancos. Esse tema
também foi trazido à discussão por Gilberto Freyre em “Casa-grande &
Senzala”. Outro tema importante abordado
foi o da transmissão de doenças venéreas pela libertinagem em uma época na qual
o seu tratamento ainda não estava desenvolvido nem tão pouco o de
preservativos.
A temática,
a estrutura literária e a linguagem de “Menino de Engenho” caracterizam com boa
precisão o povo nordestino na medida em que ilustram o seu falar, os seus
costumes e as suas tradições. Foi possível constatar, também, o uso de termos
folclóricos e o de neologismos. Contudo, apesar de trazer personagens do povo e
termos e expressões populares, é observado o emprego do padrão culto de
linguagem por parte de José Lins do Rêgo em seu primeiro romance.
A narrativa em primeira pessoa por Carlinhos permite que, ao longo de seu curso, verifiquemos como
se deu o processo de formação da sua personalidade.Também é possível encontrar em “Menino
de Engenho” uma profusão de críticas sociais, o que faz dela uma das obras
canônicas da Literatura brasileira.
"Menino de Engenho" é uma obra bastante memorável do movimento regionalista. Embora seja um
clássico, a leitura flui sem dificuldades. A obra permite ao leitor conhecer o
Nordeste durante o período em que a economia açucareira encontrava-se em
decadência e mudanças no contexto político do Brasil
imprimiam mudanças sobre a região. Trata-se de um livro digno de ser lido não somente
pelos nordestinos, mas por todos os brasileiros que reconhecem a importância de
cada região do país.
Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite
Ficha técnica:
Ficou muito bom
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