[Artigo] A criação da Psico-História de Hari Seldon por Isaac Asimov em Fundação

 




A sociedade atual é marcada pela mudança na forma de entendermos e nos relacionarmos com nossos artefatos técnicos. Pela rapidez e profundidade com que produzem mudanças nos modos de o homem ser e experimentar o mundo, as tecnologias de informação dissolvem as nossas concepções ontológicas e epistemológicas mais garantidas. Nesse contexto, as várias obras de arte e estudos científicos e filosóficos, ao problematizar as relações entre tecnologia, subjetividade e configurações espaço-temporais, têm convergido para temáticas e elementos estéticos da ficção científica. 

Com o imaginário tecnocientífico e das mudanças promovidas na Revolução Industrial, a ficção científica teve a partir do início do século XIX as condições para o seu surgimento. Foi somente no século XX que o termo ficção científica foi concebido. Entre as décadas de 1930 e 1940, a ficção científica já tratava de temas relevantes para a época, como a crise energética, superpopulação e energia atômica. Entre as décadas de 1950 e 1960, com o surgimento de duas novas revistas (The Magazine of Fantasy and Science Fiction -1949-e Galaxy Science Fiction-1950), houve um deslocamento da ênfase do gênero na ciência e tecnologia para  as ciências sociais e humanas. 

Enquanto gênero, a ficção científica esforçou-se para ser definida como uma literatura engajada à ciência. O que significa que os seus enredos retratam um mundo possível dentro ou no limite das verdades científicas. O fazem através do vocabulário, das condições tecnológicas e dos impactos sociais, estéticos e éticos na sociedade. Exemplo disso podemos ver em "Fundação", de Isaac Asimov, trilogia iniciada em 1942 e finalizada em 1953. Cujo sucesso foi titânico a ponto de gerar uma continuação com mais quatro livros - "Limites da Fundação" (1982), "Fundação e Terra" (1986), "Prelúdio à Fundação" (1988) e "Origens da Fundação" (1993).

Profissionalmente, antes de ser escritor Asimov foi cientista. Aluno de escolas públicas do Brooklyn, em 1935 -então com 15 anos-, Asimov ingressou no curso de Química da Universidade de Colúmbia, onde escreveu os seus primeiros contos. Seu interesse pela literatura de ficção foi fomentado pela leitura de revistas de baixo preço que encontrava na loja do pai enquanto lá trabalhava. Tais revistas popularizaram o gênero ficção científica e o editor de uma delas, John Campbell, tornou-se amigo pessoal de Asimov, o qual foi uma espécie de consultor em mentor de "Fundação".

Na trama, um Império Galáctico, força conquistadora e aglutinadora do centro da galáxia, irradia o seu poder. Em sua capital, Trantor, se apresenta Hari Seldon, guru criador de uma nova ciência, a Psico-História. Esta apresentou como primeira suposição de verdade a previsão do fim do Império, seguido de um longo interregno de barbárie até a construção de uma segunda ordem imperial. Tendo calculado esse processo, sustentando-se nos condicionamentos psicológicos que sustentam as massas, Seldon planeja intervir na tendência natural da história e restringir o futuro bárbaro.

Propõe a criação da Fundação, localizada em Terminus, um pequeno planeta na borda da galáxia, cujo objetivo seria o de elaborar uma  Enciclopédia Galáctica como guarida dos conhecimentos técnicos/científicos e, com isso, ancorar a nova civilização e reordenar a galáxia. 

Nesta nova ciência, os grandes conjuntos humanos exibem comportamentos regulares diante de estímulos sociais, econômicos e religiosos. A existência dessas regularidades seriam matematizáveis e impõem um sentido à História na medida em que funcionam como estruturas inconscientes de comportamento. A existência de regularidades psicológicas e sua estruturação em um sistema científico suscita discussões que estão em um dos centros do debate teórico nas ciências sociais. 

No início do século XX, o paradigma de que os objetos sociais devem ser entendidos a partir de uma estrutura social de relações objetivamente apresentadas esteve na base da formação das ciências sociais como disciplinas científicas no início do século XX. A partir dessa fórmula, estruturalista, seria possível construir conhecimento sobre as sociedades sem lançar mão de princípios a-históricos vagos, cuja afirmação apriorística já não condizia com o novo rigor metodológico da ciência afirmado justamente na quebra de apriorismos. 

Nos anos 1930, o exercício teórico do estruturalismo como fundamento metodológico de validação científica das novas ciências sociais oxigenou os tecidos gastos das filosofias iluministas. O estruturalismo tornou-se evidente nos estudos sobre as relações do homem com o espaço ou nas formulações mentais de longa duração. Nesses estudos, a ação individual tinha apenas um efeito superficial. Nos estudos sobre mentalidade, por exemplo, argumentava-se em favor de estruturas do inconsciente coletivo às quais os indivíduos estão, simplesmente, submetidos.

Quando a Psico-História de Hari Seldon em "Fundação" propôs a existência de estruturas psicológicas bastante rígidas, estruturais, ela foi ao encontro dos programas de pesquisa que eram próprios das ciências humanas na metade do século. O determinismo em torno da Psico-História não apresentou uma aceitação passiva dos personagens daquele universo, o que complexificou a narrativa e a reaproximou do interesse do leitor. O desenrolar do sentido histórico conflitou a todo tempo com a reivindicação dos personagens de seu poder de ação e através dele o sentido histórico relativo e não teleológico do futuro. 

Ao expor esse embate, "Fundação" também esteve em sintonia com os estudos de ciências humanas da época. O estruturalismo no estudo das ciências humanas deu margem para a virada teórica na chamada história cultural, cuja missão frente ao estruturalismo era devolver a história aos sujeitos. A partir de então, houve um embate entre uma perspectiva estrutural, funcional das permanências, e outra circunscrita, preocupada antes com a particularidade, o específico, a mudança. 

Situado entre esse embate, estão as principais correntes históricas: o marxismo, os Annales, o historicismo e a nova história cultural. Podemos traçar nele uma conexão entre a Psico-História de Asimov e o debate teórico no interior da História. A razão estruturalista antecede a formulação da Psico-História. O movimento da sociedade pode ser estruturado dentro da referida ciência, mas o movimento individual não.

No decurso do enredo, ante a previsão a decadência do Império Galáctico que levaria a sua destruição e seria seguida por milênios de barbárie, Hari Seldon cônscio da grande probabilidade deste futuro elaborou um plano para desviar o curso dos acontecimentos, manipulando ações individuais em pequenas doses periódicas. Seu plano, o Plano Seldon, seria levado adiante pelos futuros cidadãos da Fundação. Somente em meio a situações críticas previstas, as Crises Seldon, a consciência do psico-historiador retornaria às futuras gerações por meio de mensagens programadas para a resolução das referidas crises. 

Ao longo do século XX, surgiu nos debates da Psicanálise a ideia de mobilizações sociais serem condicionadas por instintos. Isso influenciou a compreensão dos diversos fenômenos sociais ao longo do referido século. Visível nos sistemas conceituais, temos os termos: ferramentas mentais, estruturas mentais, inconscientes coletivos e mentalidades. 

Já a noção de indivíduo consciente autônomo frente aos instintos, em embate e ligada à concepção anterior em "Fundação", é fruto da intuição cartesiana do "Cogito, ergo sum". Na Psico-História, Asimov propôs uma ideia de individualidade ligada a uma essência racional, uma concepção distinta dos debates sobre subjetividades que começavam a se infiltrar no programa estruturalista das ciências sociais, onde o indivíduo torna-se o centro do significado de todo o movimento social. 

Na obra, o núcleo desestruturante da ação individual é a racionalização do consciente do sujeito, que é capaz de abrir o leque de possibilidades de ação para além de seus condicionantes instintivos. A narrativa abre a dúvida sobre a liberdade da ação individual ao pôr em questão a possibilidade de atuação do indivíduo como sujeito da História. Nesse contexto, as previsões da Psico-História seriam formuladas frente a uma tensão entre a possibilidade de ação do indivíduo frente a uma condição instintiva coletiva passiva de estruturação matemática. 

A referida ciência propunha que o desenrolar desse conflito demonstraria que a ação individual consciente é, no geral, fraca para produzir mudanças nos rumos do processo histórico. Isso porque à ação do indivíduo se seguiria uma reação coletiva que um indivíduo normal não poderia guiar. A despeito disso, o indivíduo que age consciente é uma variável insólita no curso imediato do desenvolvimento histórico. 

A dualidade entre indivíduo e coletivo expõe o jogo de composição da obra, que incorpora perguntas pertinentes da teoria social e as tenciona com fórmulas alternativas que têm, contudo, um problema que se desdobra: a dificuldade de compreender a lógica de sobreposição desses dois mundos. Para compreender a organização dos indivíduos em estruturas de forma matematizável, a Psico-História comparou a ação individual a moléculas no contexto da teoria cinética dos gases. 

Dessa forma, o debate epistemológico em "Fundação" perpassa tanto as ciências sociais quanto as naturais. Nela, vimos a aplicação do conceito de ciência histórica sendo aplicado na ciência ficcional na Psico-Histórica, que não pode ser considerada absurda na realidade do ensino da disciplina entre os anos de 1950 e 1970, quando a quantificação e a expectativa de totalização eram programas de pesquisas bastante vivos na ciências sociais. 

Pelo contexto cultural que marca e formata a sua linguagem, a ficção de Asimov está marcada por uma ruptura na cosmogonia científica moderna. É racional pensar a ficção científica em alteridade com a cultura científica da época. Nessa concepção, a ficção do autor fez mais do que projetar paisagens tecnológicas e sugerir desdobramentos sociais da ciência. 

Nobert Elias, em "O Processo Civilizador", e Hannah Arendt, em "Entre o Futuro e o Passado", propuseram a ideia de que o discurso científico implica alterações na cultura e na sociedade. Na medida em que a ciência adentra o centro da literatura, criando um gênero, caminha em um movimento de alteridade que recria tanto a atividade criativa quanto a atividade racional. Nesse sentido, a ficção científica procura reconstruir um mundo de experiências imaginadas ou recriar uma tradição, agora sustentada no argumento científico.


REFERÊNCIAS:


BONFIM, Luís Cláudio dos Santos. Um sentido para a História: Psico-História na Fundação de Isaac Asimov. XXIX Simpósio Nacional de História. Disponível em: < https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1502812729_ARQUIVO_ArtigoAnpuhfinal.pdf >


OLIVEIRA, Fátima Régis. Como a ficção científica conquistou a atualidade: tecnologias de informação e mudanças na subjetividade. Intercom - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação 2005,  XXVIII (2). Disponível em: < https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=69830958006>


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