[Resenha] Pedro Páramo - Juan Rulfo

 


Sinopse: "A leitura profunda da obra de Juan Rulfo me deu, enfim, o caminho que buscava para continuar meus livros." - Gabriel García Márquez

O realismo fantástico como hoje se conhece não teria existido sem este livro. Desta fonte beberam o colombiano Gabriel García Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa. A partir da combinação de dois elementos essenciais ao sucesso da literatura latino-amerciana - o realismo fantástico e o regionalismo -, Rulfo se destaca pela sua habilidade em contar uma história reunindo relatos e lembranças.

De enredo conciso e preciso, o único romance de Juan Rulfo trata da promessa feita por Juan Preciado à mãe moribunda. O rapaz sai em busca do pai, Pedro Páramo, um lendário assassino. No caminho, encontra impressionantes personagens repletos de memórias, que lhe falam da crueldade implacável de seu pai.

Em sua estrutura não há linha temporal exata, tampouco um narrador fixo. Juan Rulfo nos leva a mergulhar e a nos dissolver no turbilhão dos sentimentos de todo um povoado, em torno desse grande homem.

Alegoricamente, o romance é o Méximo ferido, que grita suas chagas e suas revoluções, por meio de uma aldeia seca, onde apenas os mortos sobrevivem para narrar os horrores de sua história e política. Pedro Páramo é basicamente sobre a presença da morte em meio à vida. Um livro, de poética simples e concisa, curto e inesquecível.


Opinião: "Pedro Páramo"


As produções literárias de H.P. Lovecraft se inscrevem no domínio da Literatura Fantástica. Elas se aproximam de Edgar Allan Poe na medida em que criam mundos fantásticos dominados pelo horror. As mais conhecidas teorias sobre a literatura fantástica padecem de um problema metodológico elementar: excluem as considerações sobre a transformação da realidade em forma artística. Esse foi o caso do estudo "Introdução à Literatura Fantástica" do francês-russo Tzvetan Todorov, no qual afirmou que o texto literário não mantém uma relação de referência com o mundo. 


Em contraste, nos trabalhos de H.P. Lovecraft, como no caso do último conto aqui resenhado, o horror expressou frequentemente a solidão e a insignificância do ser humano no seio de um universo infinito, amoral, hostil e desprovido de significado. Nele, o medo não seria gerado apenas pelos monstros provenientes do espaço cósmico ou de eras remotas, mas por uma consciencialização da situação do homem no mundo. 


Foi esse o caso de  "The Nameless City", conto em 1921 publicado. Neste, encontramos a trama na qual o narrador encontra pinturas de estranhos seres semelhantes a crocodilos após descobrir a Cidade Inominável após a sua digressão pelo deserto da Arábia. Também foi o caso de "The Shadow Over Insmouth", de 1931, no qual o protagonista é atraído para a cidade de Insmouth, habitada por estranhos seres repelentes apenas por curiosidade. Nesta, conhece um velho alcoólico que lhe narra histórias bizarras com o intuito de explicar a degradação da cidade e a degenerescência biológica e psicológica de seu povo. 


E também foi esse o caso de "At the Mountains of Madness", concebido também em 1931. Este narrou uma expedição à Antártida da qual o narrador participou. Nela, alguns de seus companheiros morrem em condições misteriosas e o herói encontra estranhos fósseis de criaturas desconhecidas e o inominável horror da ciclópica cidade concebida pelos seus antepassados. Um ponto em comum há entre esses trabalhos. 


Os seus narradores foram atraídos pela atração e pela curiosidade incontroláveis pelo que é estranho, diferente, misterioso e aterrador. Este foi um elemento fulcral que permitiu a construção das cidades em ruínas apresentadas nos referidos contos. Tais cidades em ruínas constituíram o cenário e o espaço onde a ação se desenrola e o horror se projeta. Além disso, operaram como um elemento veiculador a realidade e símbolo de uma descrença no presente e previsões catastróficas para o futuro.


Encontramos aspecto similar em um romance que marcou a narrativa latino-americana e que rapidamente se tornou em um clássico. A partir dela, seu autor alcançou prestígio internacional, o qual não tardou a chegar aos escritores brasileiros. Me refiro a "Pedro Páramo", obra de Juan Rulfo, a seguir resenhada.


" VIM A COMALA porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo"


É com essas palavras que Juan Preciado, narrador da história, dá início a trama ambientada em Comala, aldeia fantasma que simboliza no romance o sofrimento vivido pelo México no momento da concepção da obra. Antes de falecer, sua mãe roga para que ele encontre Pedro Páramo e exija o que deles é: a cobrança pelo esquecimento em que os deixou. 


Durante o percurso, Juan conhece outros filhos de Pedro Páramo e ao chegar descobre que o mesmo faleceu há muitos anos. Decepcionado por ir a um vilarejo desconhecido à procura de alguém que não existe, Juan procura alojamento em Eduviges Dyada. Na hospedagem, o narrador conhece a relação entre dona Eduviges e sua mãe: eram grandes amigas que fizeram a promessa de morrerem juntas. 


O desenrolar do enredo traz-nos a impressão inicial de estarmos diante de uma narrativa caótica e absurdamente desorganizada. Com o avançar da leitura, não é possível saber de antemão se os personagens estão vivos ou mortos ou sobre quem fala, com quem se fala ou de quem se fala. Não obstante, uma leitura atenta nos permite vislumbrar uma narrativa engenhosamente estruturada, bem organizada e com uma rígida lógica interna. 


A peculiaridade da estruturação da obra é tão notável que chegou a se tornar tema de numerosos trabalhos acadêmicos. Outra característica louvável da forma como a trama é narrada é apontada pelo prefácio da obra. Ela diz respeito à economia da linguagem: nada é descrito além ou aquém do necessário. 


A princípio, a referida parcimônia foi um aspecto que não me agradou. É difícil a um leitor fruir de uma imersão em uma leitura de escrita menos densa. O aparente caos na estruturação da obra também não me agradou: a ausência de demarcações de linearidade teve como efeito obstar a minha percepção de fatos ocorridos no presente ou no passado e dos ocorridos entre os vivos ou entre os mortos. 


O avançar da leitura promoveu em mim uma mudança de ideia: o caos da narrativa requereu de mim a devoção de uma atenção que promoveu a minha imersão no enredo sem a necessidade de uma linguagem prolixa. E a sua ausência, além de tornar a leitura leve e corrida, ainda permitiu ao autor dar vazão às emoções que os eventos narrados na obra promovem. As referidas emoções despertadas pela leitura são para mim uma das maiores virtudes da obra. 




Entre as décadas de 1940 e 1970, a literatura latino-americana atingiu um patamar de qualidade e reconhecimento comparável ou até superior ao que estava sendo produzido na Europa e nos Estados Unidos. Isso foi um feito notável: era a primeira que um conjunto de escritores da América Latina se mostrava capaz de superar as amarras do subdesenvolvimento e dependência cultural através da publicação de obras e mais obras que se tornaram marcos da literatura mundial e que influenciaram os melhores escritores europeus e norte-americanos, com isso mitigando ou mesmo revertendo a direção unilateral de determinação do centro do capitalismo em relação a sua periferia. 


Não se via um fenômeno cultural dessa envergadura e com essa característica emancipatória desde que a Rússia havia superado os demais países europeus na segunda metade do século XIX. Ele representou uma nova atitude artística diante da realidade, significando uma possibilidade de se criar um fantástico literário completamente diferente da farsa livresca que vinha sendo praticada pela literatura fantástica europeia. 


O contexto histórico de ambos os estilos é capaz de explicar essas distinções. Enquanto no século XX, o avanço da sociedade burguesa sob os marcos do positivismo levava a eliminação do espaço autêntico para a literatura de temas fantásticos tradicionais, abusados desde o romantismo, na América Latina havia um outro lastro histórico para o fantástico. Havia peculiaridades culturais derivadas de sua específica formação socioeconômica. 


O sincretismo religioso, a manutenção de crenças animistas e outros resquícios de culturas africanas ou ameríndias, que se encontravam em toda a parte na cultura popular dos povos latino-americanos, sobretudo fora das capitais e regiões metropolitanas, indicava um grande espaço ainda inexplorado ou mal explorado pela literatura. O gênero, denominado Realismo Fantástico, mobilizou as últimas experiências estéticas do modernismo para dar uma voz mais autêntica ao efetivo povo latino-americano. 


E teve como precursor "Pedro Páramo", obra aqui resenhada. 


Juan Preciado, embora narrador do enredo, não foi o seu protagonista. Este torna a intercalar presente e passado. No passado, é narrada a morte de Miguel Páramo e o seu velório e logo somos apresentados à história de Pedro Páramo. Nela, vemos a ascensão econômica do protagonista, que se torna grande detentor de posse de terras em Comala sem o benefício de heranças. 


A crítica especializada enalteceu o trabalho de Rulfo. Angel Roma, acadêmico e literário uruguaio, identificou na obra aspectos da modernização latino-americana se combinando a elementos da cultura europeia em um processo complexo, não mecânico, em uma operação narrativa centrada na figura do narrador. 


Embora possua Pedro Páramo como protagonista, a obra aqui resenhada contém uma história coletiva contada pelos seus diversos participantes em discurso direto. Os eventos narrados, à exceção das intervenções do narrador em terceira pessoa, estão subordinados aos processos de memória e organização do pensamento coletivo do povo de Comala. 


Tal como nos contos de H.P. Lovecraft citados nos parágrafos introdutórios desta resenha, Comala representou nesta uma obra uma cidade fantasma que expressou uma descrença no presente ao simbolizar o sofrimento vivido pelo México no momento de concepção da obra. Os eventos narrados na cidade guardam relação com a vida de seu autor, sendo um retrato restrito da infância

de Rulfo. A sucessão de eventos a levaram a um lugar à margem da história. Caso a palavra estivesse sempre em poder de Pedro Páramo seria possível conhecê-los, mas não compreender as razões que a tornaram um purgatório eterno.


Neste ano, o início da revolução Mexicana completa 114 anos. Teve início em 1910 e se estendeu até 1917, momento da publicação de "Pedro Páramo". 






A revolução marcou o início da Idade Contemporânea na América Latina. Em função do eurocentrismo que perpassa os estudos das ciências sociais em nosso continente, ele ainda é um evento pouco conhecido na região. Sua relevância é digna de comparação com revoluções na Europa cuja influência se espraiou por todo o mundo. 


A Revolução Francesa, a seu tempo, aboliu o sistema feudal e abriu caminho para uma sociedade burguesa moderna. Também criou um modelo universal, conforme apontou Marx, de sistema político, a forma clássica e paradigmática do moderno estado burguês. Por sua vez, a Revolução Russa eliminou o sistema político czarista e superou uma realidade de servidão camponesa. Cravou, pela primeira vez na história da humanidade, um sistema social não capitalista. 


Já a Revolução Mexicana derrotou a hegemonia da oligarquia, substituindo-a por uma burguesia agrária e desencadeando mudanças significativas na economia, política e diplomacia, campos social e cultural e nas relações entre Estado e Igreja. Foi um marco que ultrapassou, e muito, as fronteiras físicas. 


A revolução ocorreu em meio ao capitalismo mexicano e sua integração ao moderno mercado mundial, que amadureceu as forças da oposição, que se levantaram para derrotar um desenvolvimento desigual, injusto e inteiramente voltado para fora. A influência da Revolução Mexicana foi muito além de seu país. Ele foi um motor fundamental para o desenvolvimento do Capitalismo na América Latina nas décadas de 1920 e 1930 e influenciou radicalmente todas as mudanças operadas durante o período. 


De acordo com o historiador Carlos Antônio Aguirres Rojas, as principais conquistas a nível nacional foram: a) realização da primeira reforma agrária da América Latina no século XX; b) resolução dos principais obstáculos que se opunham a formação de um mercado interno nacional; c) levou o país a melhores condições para desenvolver o seu próprio processo de industrialização; d) levou a uma reconfiguração profunda das classes sociais mexicanas; e) gerou uma emergência social da classe média urbana; f) criou condições para que o chamado Estado de bem-estar-social tivesse uma presença maior que nos demais países da América Latina; g) promulgou a Constituição de 1917, considerada, na época, a mais avançada do mundo.


A Revolução Mexicana esteve, portanto, profundamente marcada pelo caráter agrarista, tanto que a luta pela terra tornou-se o grande motivo deflagrador do processo. E foi caracterizada como burguesa agrária, uma vez ter sido a facção vencedora da luta armada. A luta de classes a ela ligada esteve umbilicalmente ligada a sua eclosão.


Durante o porfiriato, período situado entre 1884 e 1911, observamos o desenvolvimento do capitalismo nacional mexicano em meio à expansão mundial de capital e ao Imperialismo, que evidenciou contradições sociais e políticas profundas no país. Na época de Díaz, foram ampliadas as relações capitalistas no campo, impulsionadas por empresas estrangeiras em associação com empresários locais, que tomavam terras supostamente devolutas para trazer colonos estrangeiros. 


Também ocorreu a construção de ferrovias para unificar o mercado interno e acelerar o transporte de mercadorias. Na prática, houve um sufocamento da resistência indígena e da população à centralização do estado nacional e um grande confisco de terras dos camponeses indígenas, dos pueblos e das comunidades. 


Em 1907, uma crise econômica mundial desestabilizou o quadro de estabilidade imposto pelo porfiriato. O idílio em que vivia as camadas privilegiadas tornou a ruir. E a reação do governo foi desastrosa, apenas agravando os efeitos da crise. Ocorreu um encarecimento geral dos artigos e uma queda real dos salários entre 1908 e 1911. 


As mobilizações operárias adquiriram uma tonalidade nunca antes vista. Porfírio Diaz chegou a reprimir as lutas enviando exércitos para as ruas e promovendo um banho de sangue. No campo, as tensões também se tornaram insustentáveis.


Em 1910, a concentração de terras atingiu cifras exorbitantes. No norte do país, em rápido crescimento econômico destacaram-se movimentos sociais de rancheiros e ex-colonos militares. No Sul, as contradições do avanço do capitalismo sobre as terras comunitárias reacenderam a luta camponesa. A liquidação generalizada das comunidades camponesas era um objetivo econômico e social do estado mexicano que mantinha uma tensão permanente no campo. 


Esta tensão foi muito bem retratada no município fantasma de Comala que ambientou a obra aqui resenhada. Nela, o autor buscou de forma especial e particularizada compreender a totalidade das sociedades colonizadas na América Latina, especialmente aquela vivida no México nos tempos de Revolução Mexicana. 


Em "Pedro Páramo", Rulfo modelou a sua narrativa promovendo um sintético, porém abrangente, inventário de tragédias dos povos latino-americanos e de sua própria tragédia familiar. Sua obra constitui quase um texto definidor da herança social que é legada às sociedades ibero-americanas, cujo principal patrimônio é a amarga e angustiante vida dos segmentos pobres das populações latino-americanas. "Pedro Páramo" imortalizou as iniquidades e perversões mais profundas da vida rural das Américas portuguesa e espanhola, revelando um universo não apenas pobre, mas rude e de violência enraizada como condição básica para a sobrevivência.  


A leitura da obra promoveu em mim, inicialmente, uma dificuldade de identificação com as experiências narradas. O uso do discurso direto por meio dos demais participantes da história para contar a história coletiva do povoado de Comala aliado ao estudo de todo o contexto histórico em torno do enredo permite não apenas compreender a importância histórica da obra, mas para apreciar a sua qualidade. 


As histórias contadas em Comala são para onde confluem a história do próprio Pedro Páramo. O início da leitura promove a impressão de que a obra irá se tratar de uma grande história de auto-conhecimento. Mas logo a parcimônia da narrativa se torna obscura a partir do momento em que o discurso direto mencionado no parágrafo anterior sobre o qual os diversos participantes do enredo narram-na é utilizado.


É a partir do momento em que essas histórias se conectam a vida de Pedro Páramo que a sua leitura se torna tão agradável e percebemos a sua conexão com a realidade, a qual foi explorada, cada um a seu tempo, pelo Realismo Fantástico de Juan Rulfo e pelo horror cósmico de H.P. Lovecraft sobre o qual discutimos nos parágrafos introdutórios desta resenha. 


"Pedro Páramo" é o único romance em prosa de Juan Rulfo. Na década de 1960, marcou uma reorientação na narrativa latino-americana ao lado de "Grande Sertão (Veredas)" de João Guimarães Rosa, estando ambas as obras associadas ao regionalismo. Tão grande é a sua importância que é apontada no prefácio como a obra mais importante do México, marcou a inauguração do Realismo Fantástico e influenciou diversos escritores, desde Gabriel García Márquez até escritores brasileiros que aderiram à literatura regionalista. E me propiciou uma das melhores leituras da vida. 




REFERÊNCIAS:

BAÍA, Paulo. DIGENTES, INVISÍVEIS E DESQUALIFICADOS: UMA ANÁLISE DO ROMANCE PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO. Disponível em: <http://www.achegas.net/numero/vinte/paulo_baia_20.htm



GAGO, Dora Nunes. Representações das cidades em ruínas de H.P. Lovecraft. MÁTHESIS 22 2013. Disponível em: <https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/21557/1/21557.pdf>

OLIVEIRA ANDRADE, E. de . A LUTA DE CLASSES NA REVOLUÇÃO MEXICANA DE 1910. Revista Mouro, [S. l.], v. 2, n. 3, 2023. Disponível em: <https://revista.mouro.com.br/index.php/Revista_Mouro/article/view/51>


Rampinelli, W. J. (2011). A Revolução Mexicana: seu alcance regional, precursores, a luta de classes e a relação com os povos originários. Revista Espaço Acadêmico, 11(126), 90-107. Disponível em: <https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14401


SIFFERT, Alysson Quirino. O Realismo do Fantástico: Teoria geral e obras exemplares. 2021. 368. Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 2021. DIsponível em:<https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/39265/1/Alysson%20Siffert%20-%20O%20REALISMO%20DO%20FANT%C3%81STICO%20-%20Tese%20UFMG.pdf>




Pedro Páramo (1955)| Ficha técnica:


Autor: Juan Rulfo


Número de páginas: 176


Nota: 10/10




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