[Resenha] O Gigante Enterrado - Kazuo Ishiguro




Sinopse:Uma terra marcada por guerras recentes e amaldiçoada por uma misteriosa névoa do esquecimento. Uma população desnorteada diante de ameaças múltiplas. Um casal que parte numa jornada em busca do filho e no caminho terá seu amor posto à prova -- será nosso sentimento forte o bastante quando já não há reminiscências da história que nos une? Épico arturiano, o primeiro romance de Kazuo Ishiguro em uma década envereda pela fantasia e se aproxima do universo de George R. R. Martin e Tolkien, comprovando a capacidade do autor de se reinventar a cada obra. Entre a aventura fantástica e o lirismo, "O gigante enterrado" fala de alguns dos temas mais caros à humanidade: o amor, a guerra e a memória.



Opinião: “O Gigante Enterrado”


Nascido na cidade japonesa de Nagasaki em 1954, Kazuo Ishiguro se mudou para a Inglaterra ainda durante a infância. Nela, ele ainda vive, embora só tenha conseguido a naturalidade enquanto cidadão britânico no ano de 1983. Naquela década, após publicar diversos artigos em revistas, ele dá início à sua carreira de escritor. 


Nela, ele escreveu oito livros. Além de livros, ele também escreve contos. Os seus talentos não se restringem à Literatura: Kazuo Ishiguro também é compositor, e um álbum no qual ele deu suas contribuições já chegou a ser indicado ao Grammy. E, em 2017, ele chegou a ser laureado com um prêmio Nobel de Literatura. Nesta resenha, falarei sobre “O Gigante Enterrado”, uma de suas mais conhecidas obras. 


Antes disso, falarei sobre a relação entre memória, tempo e História. Em “A Memória Coletiva”, o sociólogo Maurice Halbwachs nos explica o conceito que deu origem ao título da obra e nos traz as suas aplicações. Muitos dos trabalhos do autor foram publicados entre as décadas de 20 a 40 do século XX.


Francês, após o sociólogo passar um tempo estudando na universidade alemã de Gottingen, ele retorna à França em 1905 e conhece Emile Durkhein, outro sociólogo de enorme importância e que o influenciou. Tendo vivenciado as duas grandes guerras mundiais, Maurice Halbwachs também sofreu um grande intolerância. Em meio a uma sociedade etnocêntrica, o sociólogo sempre esteve entre aqueles considerados como “outro”.


Naquele contexto, ele passou a fazer parte da Escola de Strasbourg, a qual também influenciou a produção de seus materiais. Também contando com a presença de outros estudiosos nas mesmas condições, na referida escola Maurice Halbwachs se pôs em uma postura sociológica ideal para a concepção de novas ideias. No caso de “A Memória Coletiva”, o autor rompe com ideias a ele anteriores.


Na época da concepção de sua obra, vigorava o consenso de que a memória nada mais era que um processo neurofisiológico no qual o indivíduo seria o responsável por trazer à mente o seu próprio passado. Com a publicação da obra, o autor trouxe a ideia de que a memória individual é fruto de uma interpretação da memória coletiva. Nessa perspectiva, a lembrança seria resultado de um processo coletivo dependente de uma comunidade afetiva.


Somente por meio dela seria possível a um indivíduo ter a faculdade de lembrar como membro de um grupo. Em “História e Memória”, o historiador Jacques Le Goff investigou a associação entre a memória e a construção da História. Na obra, ele demonstra que, sem o registro documentado do passado, as suas lembranças no presente não possuem condições de serem resgatadas.


Encontramos um cenário bastante similar no início de “O Gigante Enterrado”. Em plena Idade Média, havia um vilarejo no qual havia um conjunto labiríntico de tocas que abrigava dois velhinhos: Axl e Beatrice. Nele, não havia um registro documental do passado ou sequer noções bem definidas sobre o tempo.


Nesse contexto, o casal decide empreender uma viagem rumo a outra aldeia para reencontrar o seu filho. Mas sem o registro do passado, como eles saberiam que as lembranças sobre o filho seriam mais do que simples devaneio? Esse foi um importante ponto desenvolvido no enredo. 


Os acontecimentos que mencionei no parágrafo anterior ocorrem no primeiro capítulo da obra. Nele, o autor nos conta sobre o início da jornada de Axl e Beatrice para encontrar a aldeia de seu filho. E o término do capítulo coincide com o planejamento da viagem a ser realizada pelo casal.


No seguinte, Axl e Beatrice a empreendem. A Grande Planície era o seu destino final. Durante o percurso, Kazuo Ishiguro explora bem o fato de a ausência do registro de memórias do filho do casal em tudo atrapalhar a busca. Foi uma jornada repleta de perigos.


Em muito ela lembrou a vida de Maria de Nazaré e o carpinteiro José rumo a Belém, local onde Jesus nasceu. Pelo menos a princípio, pois o destino da jornada de Axl e Beatrice teve um final bem diferente. Mas em muitos aspectos os casais se assemelham, falarei mais posteriormente. Enquanto durante o trajeto de Marie e José o casal houve de enfrentar uma grande provação a sua fé, Axl e Beatrice enfrentaram toda a sorte de perigos que as lendas medievais contidas na obra ofereceram. 








O livro nos leva à Inglaterra nos tempos da Idade Média. Para ser específico, no momento anterior à sua unificação. Em sua formação, o clima ameno da Britânia atraiu os primeiros povos que a ocuparam, os quais são atualmente estudados pela Arqueologia. Posteriormente, ela foi ocupada pelas tribos celtas. 


Após tentativas malsucedidas do imperador romano Júlio César de invadir a ilha, Cláudio o obtém sucesso ao invadi-la em 43 a.C. Eis quando os romanos passam a dominar a ilha, a repreender práticas religiosas nela praticadas e a nela erguer diversos monumentos. Houve um grande impacto decorrente dessa invasão.


Antes, a Britânia encontrava-se dividida em 23 áreas tribais. Depois da invasão, 16 foram destituídas de controle militar. Para efetivar a sua administração local, Roma houve de lá estabelecer cidades. Naquele contexto, com vistas a enfraquecer a resistência dos povos dominados, os monumentos a que me referi no parágrafo anterior foram erguidos com vistas a criar símbolos do poder romano.


Algo que não é possível negar é a presença de resistência naquele processo. E ela explica a adoção de diversos mecanismos para contê-la: a coerção, as transformações econômicas e estruturais e a aculturação. Em se tratando de religião, ocorreu um sincretismo entre o druidismo e a mitologia greco-romana. 


Com a instituição do Cristianismo como religião oficial do império romano, ele também foi levado à Britânia. Naquele contexto, o druidismo foi progressivamente extinto na ilha, tendo em vista a ausência da produção de registros escritos. Essa situação veio a ser modificada com a invasão do país por tribos bárbaras de origem germânica.


Os romanos abandonaram Britânia em 410 d.C. Com uma população celta pelo império romano cristianizada, as referidas tribos passaram a invadir a ilha em levas cada vez maiores. Vieram os jutos, os saxões e os anglos. Os bretões houveram de se recuar para o Norte da França, Gales e a Cornualha. 


Os bretões são os descendentes celtas da Inglaterra. Em “O Gigante Enterrado”, o contexto histórico do enredo ainda era marcado pela rivalidade entre os bretões e os saxões. Inclusive, o retorno dos bretões à Inglaterra foi promovido a partir da organização de uma resistência ocorrida nos territórios para os quais eles se viram na contingência de se deslocar.


Conforme eu disse, a jornada de Axl e Beatrice foi repleta de perigos, a exemplo dos ogros. Bastante temidos na aldeia de onde o casal provinha, em muitos momentos do livro eles não mostraram grande periculosidade. Uma característica bem marcante de Axl e Beatrice durante a jornada foi a crença na bondade das pessoas.


E em diversos momentos eles receberam ajuda para chegar à Grande Planície. Kazuo Ishiguro soube como criar um elo de empatia entre o leitor e esses personagens. Cada arranhão que eles sofriam me causavam um sofrimento que não era inferior ao sentido por eles. Uma das primeiras pessoas que prestaram ajuda ao casal foi um barqueiro.







Nos primeiros capítulos, são apresentados grandes mistérios as serem desvenda os pelo autor. Um deles está em uma grande névoa que repousava sobre o vilarejo a que pertenciam. Outro está na associação disso com a dificuldade da recordação de lembranças parte do casal. 


O autor forneceu respostas para esses pontos de forma bem inesperada. E de um jeito extremamente coerente, embora não da maneira que mais me agradasse. Essas explicações ocorreram mais próximas ao desfecho da história. Isso colaborou para a manutenção da minha atenção em relação ao enredo.


Adorei a forma como o autor apresentou a mitologia do enredo. Enquanto lemos livros de fantasia ambientados em outros universos fantásticos, é bastante comum vermos os autores lançando mão de recursos para promover no leitor um encantamento pela sua apresentação. Ou, pelo menos, de uma grande curiosidade a respeito. 


Em “O Gigante Enterrado”, Kazuo Ishiguro utiliza outra estratégia. A apresentação de criaturas mágicas e explicações sobre elas é mínima e só ocorrem na medida em que influenciam os dramas dos personagens. Eu, particularmente, gostei bastante disso. 


E acredito que o leitor contemporâneo que tenha estima por inovações também. Também devo mencionar o fato de que, apesar de o autor não procurar despertar no leitor alguma espécie de encantamento em relação ao seu universo fantástico, ele não se esquece de deixar no leitor o interesse por explicações a respeito. Mas elas só ocorrem na medida em que passam a influenciar o cotidiano dos personagens.


Outra virtude da apresentação do mundo em que esses personagens vive é que o autor nos fornece grandes pistas de que toda a ambientação foi concebida anteriormente à formulação do enredo. Adoro qualquer texto que forneça pistas de que é fruto de um planejamento prévio. E, em se tratando de ficção, ainda mais. 


Ainda não cheguei a comentar, mas esse livro é dividido em quatro partes. Na primeira, ocorre a apresentação do casal, os motivos do empreendimento de sua jornada rumo à Grande Planície e de suas dificuldades para atravessá-la. Na segunda, conhecemos melhor os novos personagens a cujo foco narrativo da obra se desloca.


Isso ocorreu dentro de um contexto. Afinal, o casal enfrentaria uma grande sorte de perigos para concretizar os seus objetivos. E a aparição desses novos personagens em muito contribuiu para que esses obstáculos pudessem ser melhor enfrentados. A apresentação desses personagens também contribuiu para a ilustração da diversidade religiosa que permeia essa obra.


Com a ascensão de Teodósio I ao poder em Roma, cujo governo se estendeu de 378 a 395 d.C, o Cristianismo tornou-se religião oficial naquela civilização. Durante o seu governo, o paganismo sofreu uma forte perseguição. Ainda hoje, a intolerância religiosa ainda é um problema bastante comum.


Aqui no Brasil, temos um país de maioria cristã. Outras práticas religiosas foram duramente perseguidas, como foi o caso da Umbanda. Aqui, a referida prática foi perseguida em solo brasileiro até a década de 1960. E, apesar de sua prática haver sido retirada da ilegalidade, crimes de intolerância como a destruição de templos ainda são bem comuns, o que eu já cheguei a comentar em outras resenhas deste blog.


No caso da Roma, diversos clérigos chegaram a criar defesas a perseguição contra os pagãos. Após conquistarem a liberdade de expressar a sua crença no governo do imperador Constantino, os cristãos futuramente tiveram a liberdade de perseguir os não fiéis à religião. 


A partir do momento em que a religião torno-se a oficial do império, os privilégios dos templos e sacerdotes pagãos foram revogados. Havia um claro revanchismo, tendo em vista que os fieis ao Cristianismo tiveram templos devastados e o direito de propagar a sua fé cerceado. E, para erradicar o paganismo, a prática foi associada à superstição e os seus praticantes foram perseguidos.


No caso da Inglaterra, a conversão do paganismo ao Cristianismo também foi acompanhada por uma grande intolerância. Inclusive, houve leis que proibiram a sua prática. O combate foi bastante estratégico, tendo em vista que não havia homogeneidade entre os bretões. Apesar da diversidade, diversas tribos se uniram para oferecer resistência aos romanos.


Um dos exemplos mais emblemáticas está na revolta de Boudica. Após os icenos sofrerem invasões romanas e as filhas de Boudiceia, rainha celta, terem sido estupradas, ela reune tribos celtas e oferece uma resistência que poderia se tornar um símbolo para outras tribos celtas. Contudo, os celtas foram derrotados na batalha de Watling Street.

 

Com as invasões germânicas, ocorreram grandes mudanças. A partir do século V d.C., ocorreu o abandono das instalações romanas na Britânia. Conforme eu disse, não havia homogeneidade entre as tribos celtas. E o mesmo ocorre com relação às suas práticas religiosas.


Com a chegada dos povos germânicos, os celtas encontravam-se sob a condição de escravos. Após as invasões, o latim, idioma proferido pelos primeiros habitantes da ilha, foi adotado em detrimento da língua celta, vista como inferior. Em “O Gigante Enterrado”, vemos uma Grã-Bretanha na qual havia uma grande rivalidade entre os bretões e os saxões.


O enredo possui uma grande influência dos mitos e lendas arturianos. A título de curiosidade, no folclore europeu o rei Artur foi um líder lendário que protagonizou a defesa da Grã-Bretanha contra as invasões saxônicas. No enredo da obra aqui resenhada, a rivalidade entre esses povos é muito bem explorada.








Ainda antes da chegada dos novos personagens ao enredo, Axl e Beatrice em sua jornada conhecem um homem que lhes conta sobre Querig, uma dragoa que desempenhou um grande antagonismo no enredo e que esteve associada a muitas explicações que Kazuo Ishiguro forneceu a respeito de sua mitologia. 


Se lembram de quando eu falei que os ogros que apareceram no enredo não eram tão perigosos? Há explicações a respeito envolvendo a dragoa e seu dono. Nos primeiros capítulos é mencionada uma misteriosa névoa. Próximo ao fim, o autor nos explica a sua relação com as noções de tempo do casal. 


A graça no fornecimento dessas explicações decorre do empreendimento de tentativas de despertar uma curiosidade em relação a eles por parte do autor. Esse sem sombra de dúvidas é um dos maiores trunfos da obra. Kazuo Ishiguro sabe como levantar dúvidas para respondê-las somente em momentos estratégicos.


Nos últimos dois capítulos da primeira parte, conhecemos Edwin e o cavaleiro Wistan. Eles formavam uma dupla que em muito lembrava Dom Quixote e Sancho Pança. Um traço os diferencia: na obra aqui resenhada, Edwin e Wistan não foram construídos tendo como propósito a realização de uma sátira.


Outro os aproxima: tanto em “Dom Quixote” de Miguel de Cervantes quanto em “O Gigante Enterrado”, a relação entre os personagens é a de guia. Wistan era um guerreiro com um grande rancor dos bretões. Ele acompanha o menino Edwin em sua jornada.


Ainda nos dois  ultimos capítulos da primeira parte, Kazuo Ishiguro apresenta o cavaleiro Gawain e o seu cavalo Horácio. Ele estava destinado a matar Querig, a dragoa a que me referi parágrafos atrás. Acreditava-se que se ela caísse no controle dos nórdicos, acabaria atuando como uma arma de guerra que traria uma grande destruição.Tendo Lorde Brennus a pretensão de domá-la para ceifar a vida de seus inimigos, e a morte da dragoa foi uma tarefa designada pelo próprio rei Arthur.


Gawain fazia parte dos bretões, cujo rancor era voltado aos saxões. Um aspecto bastante notável do enredo é que o autor ilustrou tanto a intolerância dos bretões contra os saxões quanto a dos saxões contra bretões. Conheço pouquíssimas relações entre homens e cavalos tão carismáticas quanto a de Gawain e Horácio. 


A aparição dos referidos personagens foi um marco para o enredo. Após essa chegada, ele ganhou uma complexidade bem maior. Embora cada personagens tivesse seus próprios objetivos, durante a viagem houve um intercruzamento entre eles. Porém, o que os manteve unidos a princípio foi o interesse final de atravessar as estradas em segurança.


Após a apresentação dos personagens principais e de seus dramas ao longo da primeira parte, na segunda é possível acompanhar um aprofundamento de suas características psicológicas e um melhor desenvolvimento de suas motivações. Houve, também, um maior detalhamento a respeito de pontos desenvolvidos ainda na primeira parte.


Nela, houve a exposição de algumas controversas em relação ao rei Arthur. Tendo caído há alguns anos, na obra aqui resenhada o autor nos contou sobre ele trucidar crianças mas, em contrapartida, poupar viajantes inocentes. Também nos mostrou sobre como o referido rei conseguiu conciliar a paz entre saxões e bretões.

 

Há uma grande sorte de livros envolvendo questões controversas sobre o rei Arthur. Os de Bernard Cornwell, por exemplo. Mas, por a exposição dessas questões ser algo inédito a mim em relação a todas as obras ficcionais envolvendo mitos arturianos, a aqui resenhada ganha pontos comigo em função disso. As obras que li e os continha não davam essa abordagem sociopolítica que eu encontrei aqui. E, embora eu não tenha lido as obras de Bernard Cornwell, por exemplo, suspeito que esse tipo de abordagem não tenha ocorrido da mesma forma. 


Outro ponto desenvolvido na segunda parte, mas apresentado na primeira, foi o do mistério em relação às motivações de Lorde Brennus. Gawain nos conta sobre o seu temor dele perseguir todos os saxões que ali viviam. E, ao domar Querig, a concretização desse objetivo não seria um desafio tão grande. 


E o rancor de Wistan em relação a Lorde Brennus? Preparem-se para descobertas surpreendentes. As explicações a respeito estiveram entre as que mais chamaram a minha atenção nessa obra. 


Se lembram de quando eu mencionei o convívio entre povos de diferentes origens e crenças? Na segunda parte do livro aqui resenhada os personagens apresentados na primeira se hospedam em instalações de padres. Apesar de na Idade Média encontrarmos uma grande intolerância religiosa, no livro aqui resenhado os cardeais mostraram uma grande hospitalidade. E isso também é algo inédito a mim em termos de fantasia medieval.


Você já deve ter percebido que os dramas humanos apresentados neste livro são um grande atrativo. Eles são repletos de mistérios que o autor sabe como despertar a nossa curiosidade em relação a explicação a respeito. O mesmo pode ser dito sobre a mitologia da obra.


Ela também é repleta de mistérios. E a curiosidade que Kazuo Ishiguro despertou foi a mesma. O melhor de tudo é que há um grande entrelaçamento entre ambos os aspectos. Querig, a grande névoa e as dificuldades de recordação de Axl e Beatrice, por exemplo… Há uma explicação bem interessante sobre como essas questões estão ligadas. 


Se você já é leitor do autor, terá percebido a frequência com que a temática do resgate da memória é trazida às suas histórias. Na obra aqui resenhada, Axl e Beatrice possuem o objetivo de resgatar as suas lembranças para reencontrar o seu filho. E, para tanto, o intercruzamento de sua jornada com a de Edwin, Wistan, Gaway e Horácio foi bastante estratégico.


De origem japonesa, o autor se muda para a Inglaterra aos cinco anos de idade e só retorna ao Japão 30 anos depois. Duas das suas primeiras obras foram ambientadas no próprio Japão. Em “O Gigante Enterrado”, ela foi ambientada na Inglaterra medieval.


Além de ser um cenário menos explorado, o autor abordou questões bem peculiares em relação a outros livros ambientados nesse período histórico e nesse país. E mesmo  entre aqueles que abordam essas mesmas questões, não conheço nenhum que tenha se valido da questão da memória para erigir uma narrativa.


Em “O Gigante Enterrado”, o resgate de recordações foi responsável pela principal reviravolta do enredo. Para o autor, uma nostalgia em relação ao passado pode ter repercussões negativas, como ocorreu no caso do Imperialismo. No caso da obra aqui resenhada, esse sentimento decorreu de uma necessidade de esclarecimentos em relação ao presente do casal.


Um detalhe curioso a respeito da obra é que o interesse do casal em seu passado não é tão obsessivo. Além disso, não é possível enxergar um egoísmo de sua parte. A título de exemplificação, eles em momento algum mostraram algum interesse em passar por cima dos objetivos dos outros personagens.


Muito pelo contrário. Eles lhes prestavam ajuda. Inclusive, houve um momento de grande tensão nessa história no qual Gawain deu mostras de egoísmo ao oferecer resistência em conceder o auxílio de Horácio ao casal em sua busca por recuperar as suas lembranças. 


Em matéria de fantasia, a maioria das histórias que eu li foram melhor desenvolvidas em séries. “O Gigante Enterrado” é suficientemente bem desenvolvida a ponto de não precisar de volumes adicionais para fornecer explicações sobre os seus personagens e sobre a sua mitologia. Muito pelo contrário: em menos de 400 páginas, o autor os desenvolveu suficientemente bem a ponto de provê-los de uma profundidade psicológica que nada tem a dever aos personagens que encontramos nas sagas.


Ao longo desta resenha, cheguei a comparar Axl e Beatrice a Maria e José da bíblia. A ternura é um grande aspecto que eles têm em comum. Axl representava o otimismo, sempre buscando trazer a calma em momentos difíceis. Já Beatrice representava o altruísmo, jamais negando ajuda ao próximo ou pondo os seus objetivos em sobreposição ao dos demais. 


Apesar do foco desse livro nos dramas humanos, ele rendeu ótimas cenas de ação. Um traço que as torna singular perante os livros de fantasia medieval é que o autor não buscou explorar o seu lado épico. E nisso o livro ganha pontos comigo.


Tal como em outros livros do autor, em “O Gigante Enterrado” o desfecho é inconclusivo. Eu preferia que ele não tivesse esse desfecho, mas a obra me cativou ao longo do enredo de uma forma que isso não produziu em mim um decréscimo no meu grau de apreciação. Muito pelo contrário: de todos os livros de fantasia medieval ou que explorem os mitos arturianos, esse foi definitivamente o melhor. O indico a leitores de todas as idades e gostos literários. 


Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite


O Gigante Enterrado (2015) | Ficha técnica:


Autor: Kazuo Ishiguro


Título original: The buried giant


Número de páginas: 396


Nota: 10/10

 

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