[Resenha] O cometa é um sol que não deu certo - Tadeu Sarmento

 



Sinopse: Emanuel é um menino que vive num campo de refugiados sírios no meio do deserto da Jordânia. Entre privações e obrigações, encontra lugar para sonhar em companhia dos amigos, como a menina Amal, por quem nutre um sentimento diferente, que não compreende muito bem. Pelo olhar sensível do protagonista, o leitor é apresentado ao drama dos refugiados sírios, tema atual de extrema relevância, e acompanha os dilemas e sonhos de Emanuel em meio ao seu cotidiano sofrido e incerto.



Opinião: "O cometa é um sol que não deu certo"



Em março de 2011, manifestações democráticas contra o presidente sírio Bashar Al-Assad resultaram em uma guerra perdurou até os dias atuais. Suas consequências foram bem nefastas: em 2020, foi estimado um número de 384 mil mortes resultantes de seus desdobramentos. Além de um número titânico de mortes, a guerra civil na Síria resultou em um número de refugiados em torno de 5,5 milhões de habitantes. Nesse cenário, o escritor brasileiro Tadeu Sarmento ambienta o enredo de “O cometa é um sol que não deu certo”. 


O enredo tem início com um diálogo reflexivo entre Emanuel e Nabir sobre o céu, o sol e o oceano. Amal, outra garota, chega a participar da conversa. Sírios, fugiram com suas famílias do país em meio aos conflitos que mencionei no parágrafo anterior. O autor trabalha bem a questão do quão nociva foi a postura do ditador em relação às pessoas que clamavam por melhores condições de vida. 


Em meio à Primavera Árabe, a atitude repressora do referido ditador causou uma devastação no bairro de Nabir. Amal precisou abandonar a sua cidade em meio à repressão dos rebeldes por parte do governo e Emanuel e sua família também precisaram abrir mão de seu lar. E os três personagens passam a fazer parte de um mesmo convívio ao chegarem ao campo de refugiados no qual o enredo do livro aqui resenhado se passa. 







Lançado em 1988, o filme “O Túmulo dos Vagalumes” traz um enredo que possui como pano de fundo um contexto histórico que impunha aos seus personagens uma situação não menos calamitosa. A Segunda Guerra Mundial estava em sua periodicidade e causou  uma grande devastação ao Japão, país no qual a animação foi produzida pelo Studio Ghibli e onde o seu enredo se passa.


Na Primeira Guerra Mundial, assistimos ao advento da força aérea como uma arma estratégica de guerra. Seu uso ainda era incipiente. Tendo o seu uso, em geral, restrito ao suporte da força terrestre na primeira guerra, na Segunda Guerra Mundial eles demonstraram o seu poder destrutivo à população de diversos países.


E em dezembro de 1941 o Japão empreendeu um ataque aéreo a Pearl Harbor, base naval dos Estados Unidos. À época, o Japão encontrava-se em uma fase de Imperialismo e expansionismo territorial. Aquele acontecimento foi um marco para os Estados Unidos: anteriormente neutros, agora eles tornam a participar da guerra. 


“O Túmulo dos Vagalumes” retratou os efeitos devastadores que o início do conflito entre Estados Unidos e Japão acarretou ao último país. Nele, vimos as consequências da guerra aérea para o país asiático. O seu enredo floresce em meio aos meses finais da Segunda Guerra Mundial, no qual Setsuko e Seita perdem a mãe e futuramente se encontram em meio a uma luta pela sobrevivência. 


Há um aspecto bem semelhante entre o filme e a obra aqui resenhada: a empatia por uma causa e o interesse por refletir sobre problemas que em algum momento assolaram a humanidade com vistas a combatê-los.  


Tendo nascido em 1930, Akiyuki Nosaka viveu em uma época contemporânea à Segunda Guerra Mundial. Autor do conto que deu origem ao filme, ele foi um filho adotivo que perdeu o pai e a irmã durante a Segunda Guerra Mundial. Ao conceber o conto “Hotaru no Haka˜, o autor contribuiu para a formação de uma memória coletiva a respeito das tragédias promovidas pela guerra em tempos vindouros.


Analogamente, Tadeu Sarmento, embora brasileiro, problematizou as consequências resultantes dos conflitos que até o momento perduram na Síria. Teria o autor se esquecido de retratar os problemas vivenciados por nós brasileiros para dar visibilidade a outro distante de nossa realidade? A meu ver, definitivamente não.


Nos dias que correm, os sírios têm procurado refúgio em outros países. Dentre eles, o Brasil ocupa a liderança do número de refugiados provenientes da Síria. 


Com o desenvolvimento da economia cafeeira no Brasil, houve melhores condições para a transição da economia agroexportadora a industrializada. Durante os períodos nos quais o Brasil esteve na condição de Império e de Colônia, os movimentos migratórios em direção ao país foram destinados às atividades agropecuárias e mineradoras. Nisso, o Brasil contrasta com diversos países da América Latina, nos quais já havia uma notável urbanização. 


Com o advento da economia cafeeira e o deslocamento da economia brasileira do Nordeste para o Centro-Sul, a urbanização adquiriu uma grande força. Imerso na nova divisão do trabalho, ocorreu uma grande imigração de mão-de-obra estrangeira para a economia cafeeira. 


Beneficiado pela acumulação de capital promovida pela economia cafeeira, é dado início ao processo de Industrialização no Brasil. Naquele contexto, a urbanização adquiriu maior vulto e a chegada de imigrantes, também. Nos dias que correm, as grandes cidades brasileiras e, em especial, São Paulo, representam os principais destinos de imigrantes estrangeiros no Brasil.


Esse é o caso dos sírios. Aqui, não possuindo o idioma do nosso idioma e nem a capacitação necessária para a obtenção de empregos, a situação desses imigrantes no Brasil ainda é desafiadora. Mesmo caso dos personagens que participam do enredo de “O cometa é um sol que não deu certo˜. 







Da mesma forma, Akiyuki Nosaka foi empático a uma causa que, embora tenha ceifado vidas de membros da sua família, não fazia mais parte do cotidiano de outros japoneses que passaram por situações semelhantes ao longo de suas vidas. Bem sabemos que os conflitos entre o Japão e os Estados Unidos foram responsáveis por dois atentados nucleares ao Japão, os quais devem fazer parte da memória coletiva do país para lembrar a humanidade das consequências que uma guerra nuclear traria ao planeta.


Em “O cometa é um sol que não deu certo”, conhecemos as dificuldades enfrentadas pelos refugiados sírios pela sobrevivência ao acompanharmos a história de Emanuel, Nabir e Amal. O campo em que eles estavam encontrava-se lotado. As pessoas que nele moravam temiam pelas suas vidas e muitas mães suplicavam para que os seus filhos pudessem neles entrar para que não morressem antes delas.


Uma realidade do campo que afetava a qualidade de vida dos seus refugiados estava na escassez de alimentos, no racionamento de água e na constante falta de energia elétrica. E, na obra, o autor trouxe exemplos reais disso na vida dos próprios personagens. Situação bastante similar a desse livro que podemos conhecer em “O Túmulo dos Vagalumes” foi quando Setsuko e Seita têm um desentendimento com a sua tia e passam a viver em um abrigo na floresta, momento a partir do qual também passam a lutar pela sobrevivência. 


Um traço que diferencia as duas obras é que o sofrimento dos personagens de “O cometa é um sol que não deu certo” não acabou tornando o enredo em algo necessariamente triste. Há momentos de brincadeiras entre Emanuel, Amal e Nabir. Há um momento no qual eles conversam com um senhor sobre pipas, inclusive.


Isso é diferente de afirmar que a história seja alegre. Tadeu Sarmento ilustrou o convívio natural entre as pessoas e a realidade degradante dos refugiados naquele campo como partes de uma mesma rotina. E vimos como a fome afetava a vida das pessoas naquele campo de refugiados.


Uma característica do enredo desse livro é que o autor, a princípio, apresenta os personagens superficialmente para somente em seguida aprofunda-los e adentrar a sua intimidade no seio familiar. A partir desse momento, passamos a vivenciar os momentos de maior tensão da história. Um deles foi quando o autor nos mostrou que o campo de refugiados no qual Emanuel habitava não representava um local seguro ao construir uma cena na qual Yousef, o seu pai, conversava com guardas. 


Um traço bem marcante do personagem repousa em seu altruísmo. Em dado momento do enredo, Tadeu Sarmento nos conta sobre ele preferir observar a felicidade nos outros a dela desfrutar. Na conversa de seu pai com guardas a que eu me referi no último parágrafo, ele expõe uma grande preocupação de sua parte em relação a suas amigos. 


O mesmo altruísmo encontramos em Setsuko em “O túmulo dos vagalumes”. Após abandonar a casa de sua tia com Seita, todos os seus esforços são empreendidos no sentido de propiciar a sobrevivência dele e sua irmã.  E o cenário de violência e escassez de alimentos era bastante similar.


Pouco antes da conversa de Yousef e os guardes encerrar, eles deram o aviso de que os refugiados deveriam abandonar o campo por ele não oferecer mais segurança. Isso promoveria rupturas bem memoráveis na vida de Emanuel. Após o aviso ser dado, o garoto vai a casa de Omar, um homem que o ensinaria o manejo de equipamentos de Astronomia. 


Na ocasião, entendemos o porquê de o livro receber o título que lhe foi dado. Emanuel ficou bastante entusiasmado com os seus aprendizados naquela ciência. E esse entusiasmo levou-o a desistir de sua partida do campo na companhia dos demais refugiados.






Com relação aos conflitos na Síria, Tadeu Sarmento trabalha com algumas questões menos abordadas. As aprofundarei nesta resenha e análise. 


Uma delas está no fato de que, embora o autor tenha criticado veementemente a atuação do governo ditatorial que encontra-se na Síria, ele não deixou de fazê-lo em relação aos rebeldes. Na obra, Tadeu Sarmento afirma que a atuação do grupo em muitos casos puseram a população síria em risco, e que isso muito se deve à ação repressora do estado acompanhar a efusão das revoltas a ele dirigidas.


Em virtude de interesses conflituosos entre Estados Unidos e Rússia, os conflitos na Síria são considerados por muitos como a nova Guerra Fria. A sua origem é mais antiga. Embora o seu princípio tenha decorrido da Primavera Árabe, as suas motivações possuem raízes mais profundas na História. 


No final de 1920, a Síria foi ocupada pelos franceses. Durante a colonização empreendida pela França, a metrópole estimulou divisões entre os povos que compunham a colônia, os quais eram diversos. Essas divisões tinham como propósito enfraquecer a unidade árabe.


Lá, os alauítas, povo que responde por 15% de sua população, ocuparam os cargos do governo em detrimento dos sunitas, que respondiam por 80%. Após a sua independência em 1946, na década de 1960 ocorreram dois golpes de estado que favoreceram os alauítas. 


No poder, os alauítas além de não representarem a maioria da população, ainda impuseram uma série de restrições às suas liberdades e um controle populacional que nada agradaram os sunitas. Uma grande característica do conflito reside em sua descentralização. 


A insatisfação que deu origem à Primavera Árabe remonta a 1970, quando Hafez al-Assad ascendeu ao poder e concedeu um número crescente de cargos, situação que perdurou até o governo de seu filho, no qual os conflitos que hoje acompanhamos teve início. Tendo as suas reivindicações reprimidas pelo governo, essa repressão resultou em protestos cujas pautas foram bem difusas.


Alguns possuíam ideias liberais e democráticas. Outros possuíam as suas raízes no Islamismo conservador e extremista. Com ideais etnocêntricos e separatistas, os curdos também buscaram combater o governo.


Hoje, a oposição ao governo ainda é constituída majoritariamente pelos sunitas. Em aliança com os Estados Unidos, a Arábia Saudita, país sunita, é a principal fonte de rebeldes para derrubar o atual presidente da Síria. E muitos desses rebeldes possuem uma ação bastante violenta e radical, promovendo uma violência que não é inferior à promovida pelo Estado.


Outra questão levantada pelo autor está no fato de haver cristãos apoiando o governo da Síria. No país, o governo de Bashar All-assad concede proteção aos cristãos contra o fundamentalismo islâmico. E, no ano de 2013, cristãos do vale do oeste da Síria solicitaram o auxílio do Exército do presidente como forma de proteção contra a ameaça jihadista. 






Como a saída de Emanuel para aprender mais sobre Astronomia, como se ficaram os seus familiares? Eles se encontravam em grande apuro com as visitas de Emanuel à casa de Omar. Após retornar, Emanuel e sua família empreendem a referida viagem.


Conforme eu já disse, a característica em comum mais marcante entre Emanuel e Setsuko é o altruísmo. Outra está no fato de que o altruísmo de ambos nem sempre bastou para que se evitasse tragédias. É isso o que vemos no final de ambas as histórias, os quais tiveram cenas bem melodramáticas. 


Se há algo que une as duas obras é o apelo melodramático. E ele ocorreu de uma forma que muito contribuiu para a obtenção de um grau máximo de apreciação de minha parte. No caso de “O Túmulo dos Vagalumes”, por ocorrer uma tragédia cujo protagonista fez de tudo para impedir. Já no de “O cometa é um sol que não deu certo”, devido às despedidas que o cenário conflituoso na Síria impôs ao protagonista, além de outra grande tragédia completamente evitável. 


A leitura de “O cometa é um sol que não deu certo” foi para mim uma experiência sem par. A considero como uma das mais marcantes da minha vida, assim como “O túmulo dos vagalumes” representa para mim uma das melhores animações a que eu assisti. Ambas as obras são baseadas em casos reais. Tal como outras obras que retratam tragédias vivenciadas pela humanidade, “O cometa é um sol que não deu certo”e “O túmulo dos vagalumes” possuem o potencial de marcar vidas.



Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite





O cometa é um sol que não deu certo (2017) | Ficha técnica:


Autor: Tadeu Sarmento


Número de páginas: 120


Nota: 10/10



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[Resenha] O seminarista - Bernardo Guimarães

[Resenha] O Mandarim - Eça de Queiroz

[Resenha] Helena - Machado de Assis