[Resenha] Kim - Rudyard Kipling


Sinopse: A carreira literária de Rudyard Kipling se consagrou com O livro da selva, clássico infantil com as histórias de Mogli, o menino lobo. Em 1907, Kipling tornou-se o primeiro autor de língua inglesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Kim, de 1901, é um retrato vivo da Índia imperial, rica em culturas, linguagens e religiões. Uma história emocionante sobre a amizade de Kim, um menino órfão, com um lama tibetano. Em uma difícil jornada, eles cultivam uma grande afeição que se equilibra entre os desejos do jovem de se inserir no jogo do imperialismo e as vontades do Mestre, direcionadas aos mistérios da Roda da Vida. Kim encanta e seduz várias gerações em todo o mundo há mais de um século.

Clássico da literatura moderna, Kim é obra do primeiro autor de língua inglesa a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, cuja carreira foi consagrada com O livro da selva, clássico infanto-juvenil com as histórias de Mogli, o menino lobo.


Opinião: “Kim”

Nascido na cidade indiana de Bombaim, Rudyard Kipling migrou para a Inglaterra e nela veio a se tornar um dos seus escritores mais populares entre o final do século XIX e o século XX. Autor de “O Livro da Selva”, o livro obteve um grande sucesso e hoje é conhecido por dar origem a animações do estúdio Walt Disney Productions. Publicado entre dezembro de 1900 e outubro de 1901, “Kim” foi outro livro do autor a conquistar o público infanto-juvenil.

Na trama, Kimball O’Hara era um descendente de ingleses que habitava a Índia. Sob os cuidados de uma mulher mestiça, Kim era filho de um homem cujo nome era o mesmo e de uma mulher que com ele se casou e era ama de um filho de um coronel. Ambos morreram sob condições indignas: a mãe de cólera e o pai em meio ao seu vício pelo ópio.

Criança, Kim ficou sabendo de uma lenda de que um grande touro vermelho e um coronel montado em seu cavalo um dia viriam busca-lo. O garoto vive nas ruas e Rudyard Kipling expõe muito bem essa realidade. Ele aproveita a ocasião para expor a situação de pobreza vivenciada pela Índia.

Com o avançar da narrativa, Kim passa a acompanhar um comerciante que nada mais é que um dos agentes nativos do serviço secreto britânico. Após conhecer um lama, o garoto empreende uma grande viajem pelo lendário rio da Seta.

Esse é o primeiro livro que leio de Rudyard Kipling. Já li alguns contos inclusos em um livro, os quais eu resenhei no perfil do blog no Instagram. Um traço bem marcante daqueles contos foi a presença de uma linguagem demasiadamente descritiva e, em alguns casos, a de uma narrativa destituída de um dinamismo satisfatório.

Na obra aqui resenhada, o autor é mais econômico nas descrições e há um dinamismo maior na narrativa. Por se tratar de uma novela, ele goza de uma maior liberdade de narrar vários eventos, em contraste com os contos que eu li, geralmente dedicados a acontecimentos específicos. Além de mais numerosos, os acontecimentos aqui narrados são bem mais curiosos.

A história dos pais de Kim que ele conta no primeiro capítulo, por exemplo... Como não se envolver com aquilo e não ter uma grande curiosidade em continuar lendo a história? E a profecia de que o garoto seria buscado por um touro vermelho? Aguardei bastante por esse momento.



Tanto nos anos de publicação da obra quanto no período em que o seu enredo se passa, a Índia encontrava-se na condição de colônia inglesa. O período teve início em 1858 com a transmissão dos direitos da Companhia das Índias Orientais à coroa britânica e desfecho em 1947, momento a partir do qual a Inglaterra reconheceu a sua soberania e a do Paquistão.

Contudo, a chegada inglesa ao país data de 1611, bem antes da Revolução Industrial. E a Inglaterra tão pouco foi o primeiro país a colonizá-la. Portugual já explorava o país desde o século XV, sendo a descoberta do Brasil uma tentativa malsucedida de chegar à Índia.

O interesse português na Índia deriva de uma busca por especiarias e pedras preciosas. Inspirava o país a presença de mitos, como foi o caso de Preste João. Detendo as funções de patriarca e rei, ele se tornou Imperador da Etiópia. Tal inspiração resultou no espírito de aventura partilhado pelos portugueses e os motivou a participar das tão perigosas grandes navegações.

Imbuídos do mesmo espírito de aventura, os ingleses chegaram à Índia. Lá, instituíram feitorias no seu litoral. No período em que os portugueses chegaram, o comércio era mais restrito a especiarias. No século XVII, com a chegada dos ingleses, ele se estendeu à manufatura. As tarifas alfandegárias estavam a favor da Inglaterra.

Enquanto a manufatura inglesa sofria uma taxação de 2 a 3,5%, os produtos indianos sofriam de 10 a 30%. Os valores variaram conforme o avançar do tempo, mas mantendo essa desvantagem para a Índia. Apesar da injustiça, a indústria algodoeira da Índia passou por um grande crescimento.

A título de curiosidade, naquele período, a migração da família real portuguesa para o Brasil ocorreu em meio à hegemonia da indústria têxtil inglesa devido ao fácil acesso ao algodão e à expansão agrícola da colônia brasileira. Por aqui, a Inglaterra também possuía amplas vantagens no que se refere a tarifas alfandegárias. Inclusive, a balança comercial de Portugal em relação à Inglaterra anterior à independência do Brasil só era positiva devido ao nosso status de colônia.

Após a independência, o algodão passou a fazer participar de uma parcela cada vez maior da economia brasileira. Em 1812, por exemplo, o algodão presentava mais de 85% das exportações brasileiras para a Inglaterra. Para o último país, o algodão desempenhou um papel bem importante para a industrialização que ele atravessou na virada do século XVIII para o século XIX.

No caso da Índia, diversas indústrias algodoeiras foram fundadas em cidades com comerciantes prósperos como Bombain. E as desvantagens que o país tinha no que se refere a desigualdades de tributação levou a uma grande drenagem de riquezas do país, estando ela associada a sua pobreza.

Em “Kim”, Rudyard Kipling deu certa visibilidade à pobreza na Índia. Já no primeiro capítulo, o autor narrou uma cena na qual ocorria a expulsão de mendigos de um local. Nos dias que correm, esse problema continua bem visível no país. Com uma população bem próxima da China e com uma previsão de superá-la em um tempo não muito distante, o país é um dos mais desiguais do planeta.

Segundo dados do Índice Global de Escravidão, a Índia possuía em 2016 cerca de 18 milhões de pessoas em situação de mendicância forçada, servidão por dívidas ou na contingência de se prostituir. Já em 2017, o jornal Índia Express relatou a retirada de 400 mendigos da cidade de Hyderabad com vistas a atrair investimentos externos.




No momento em que o enredo dessa obra se passa, no qual a exploração econômica do país por parte da Inglaterra ainda estava longe de acabar, as desigualdades sociais marcavam nele uma presença bastante notável. Tanto devido à espoliação econômica por parte da Inglaterra quanto pela sociedade dividida em castas.

Conforme a viagem de Kim com o lama avança, vamos acompanhando várias aventuras. Nesse aspecto, a história contada na obra aqui resenhada em muito se assemelha a uma jornada do herói. Embora tenha sido um deleite ler aqueles episódios, a curiosidade pelo momento em que a profecia do protagonista sobre o touro vermelho foi algo que se manteve durante todo o enredo.

Em seu curso, Rudyard Kipling também ilustrou a espiritualidade do país e o convívio de sua religiosidade nativa com a trazida pela metrópole inglesa. E isso em diversas passagens.

Nos dias que correm, a Índia é um dos países de maior diversidade religiosa do mundo. O Hinduísmo é ainda hoje a principal. Dela, se originou o sistema de castas que durante séculos ditou diversos aspectos das vids social e política indianas. No período em que o enredo dessa obra se passa, a Índia se encontrava sob domínio britânico.

Naquele contexto, os administradores do país estavam divididos em orientalistas e anglicistas. Ao compararem a sociedade indiana com a sociedade europeia, os anglicistas constatavam uma inferioridade cultural da colônia. Os orientalistas, por sua vez, representavam uma elite intelectual que defendia princípios segundo os quais se deveria resgatar as histórias e culturas da Índia e valorizá-las ao compará-las à cultura do continente Europeu.

Conforme eu disse no início dessa resenha, Rudyard Kipling é um indiano de nascença que se mudou para a Inglaterra ainda durante a infância. Tendo vivido a maior parte de sua vida naquele país, o autor ilustrou a religiosidade indiana sob um ponto de vista externo. Na época da concepção da obra aqui resenhada, o mundo vivenciava disputas imperialistas.

O autor foi um de seus mais notáveis defensores. Inclusive, chegou a defender em diversas ocasiões a ação dos países Imperialistas, tomando-lhes partido. E o enredo de “Kim” trouxe uma metáfora sobre como a própria metrópole britânica poderia melhor conhecer a colônia indiana com o auxílio do colonizado.

Em meio à divisão dos administradores em orientalistas e anglicistas, as elites da Índia mostravam uma postura ambígua. Embora reconhecesse a sua superioridade intelectual e tecnológica, tomava a presença inglesa como uma ameaça às suas tradições locais, as quais deveriam ser revigoradas. Nesse cenário, o enredo da obra trouxe outra metáfora: a de que a superioridade tecnológica da Inglaterra e a sua labuta para civilizar a Índia trariam progresso à Índia.

Nessas condições, é possível afirmar que Rudyard Kipling tenha defendido o Imperialismo. Contudo, não foi possível constatar de sua parte uma exaltação da violência ou de uma imposição cultural da metrópole sobre a colônia.

Cheguei a afirmar que Rudyard Kipling passou a maior parte de sua vida na Inglaterra e não no país onde nasceu. Assim mesmo, em sua carreira de escritor o autor não se esqueceu de visitar diversos acontecimentos importantes da História da Índia. No caso de “Kim”, a Revolta dos Cipaios.

Responsável por prejuízos aos comerciantes de tecidos indianos, o desfecho da guerra resultou em desvantagens alfandegárias que beneficiaram bastante a tecelagem inglesa, a qual já tinha a seu favor a fácil importação de algodão para a sua indústria de tecidos. Na obra, o autor expôs a devastação resultante do evento, não defendendo tudo aquilo que era imposto pela Inglaterra à Índia.

Em relação à diversidade religiosa do país, o autor ilustrou o convívio entre os hindus e os cristãos. Em um capítulo, Kim entre em conflito com dois padres. Nele, sabemos mais sobre a profecia dele ser levado pelo touro vermelho. Os cardeais tomavam o touro como uma força das trevas.

Deles, havia um receio quanto a esse julgamento ser errôneo. Desde o princípio dessa história, há um grande mistério a respeito da história dos pais de Kim. Ainda no referido capítulo, a curiosidade em torno do mistério ganha maior força no momento em que o protagonista começa a se questionar sobre honra de seu pai antes de falecer.

Em meio ao cenário de violência vivenciado pela Índia, os sacerdotes veem algum valor na busca de Kim pelo touro vermelho. Continuando a sua viagem com o lama, o protagonista continua a conhecer mais sobre o passado do seu pai e sobre a sua profecia. Esses foram pontos bastante fundamentais para a estruturação do enredo, e a forma como o autor os desenvolveu tornaram a sua história em algo bem interessante de ser lido.

Durante essa jornada, Rudyard Kipling continua a expor a degradante situação em que a Índia se encontrava. Na época em que o enredo da obra se passava, a Índia era marcada por um acesso bem desigual à educação, situação que se perpetuou até as últimas décadas do século XX, quando as escolas deixaram de servir exclusivamente aos setores mais abastados da sociedade indiana.

Na obra, o autor expôs a desigualdade a seu acesso. Outro problema que teve visibilidade por parte do autor foi o racismo que pairava sobre o país. O expôs em viés combativo. Sim, embora Rudyard Kipling tenha defendido a intervenção do homem branco em territórios habitados por culturas “primitivas”, postura etnocêntrica, “Kim” trouxe com um viés de denúncia social o racismo vivenciado pelos negros no país.

Na Índia, diferente da América, o tráfico de escravos foi cego às diferenças de cor do país. Qual o problema disso? No processo de integração e assimilação à sociedade indiana, os descendentes de escravos não possuíam conhecimento de seu passado diaspórico e não enxergavam a sua descendência africana. Nesse contexto, eles foram submetidos às desigualdades do sistema de castas indiano, o qual é impregnado de racismo.

Nele, há uma certa dicotomia entre negros e brancos. Lá, os brancos eram vistos como portadores de luz a expulsarem a escuridão e a ignorância carregada pelos negros. Situação bastante similar ocorreu aqui no Brasil. Em “O povo brasileiro”, o sociólogo Darcy Ribeiro comenta sobre a inexistência de uma segregação racial no Brasil não ser menos danosa que a existente nos Estados Unidos. Para ele, lá ela permitiu aos afrodescendentes se unirem para proteger a sua identidade, enquanto por aqui a intimidade que permeava o convívio entre as diferentes classes sociais levava ao seu apagamento.




A relação entre o lama e Kim é a de guia. Durante toda a jornada, o protagonista é orientado pelo lama. Juntos, aprendem várias coisas. Uma característica bem marcante da dupla é que durante toda a viagem o autor mostra uma grande preocupação em retratar o seu aprendizado, mas não a de provê-los de personalidades fortes.

Esse é um dos poucos defeitos da obra. As suas aventuras, por outro lado, acabam desempenhando um papel bem importante na manutenção do interesse do leitor no curso do enredo. Mas, levando em consideração o fato de que o autor pretendia erigir narrativa no qual esclarecimentos sobre a vida de um personagem possuiria um papel estruturador tão importante, trazer elementos que afeiçoem o leitor ao mesmo personagem engrandeceria bastante o enredo.

Já cheguei a afirmar que Rudyard Kipling ilustrou a Índia sob uma perspectiva mais externa, e isso tudo tinha a ver com o fato dele ter passado a maior parte de sua vida na Inglaterra. E a impressão que o curso do enredo me trouxe era a de que a jornada de Kim rumo ao encontro do touro vermelho tinha o propósito de apresentar a realidade indiana ao mundo. Foi como a função que o Quinhentismo desempenhou ao levar informações sobre o Brasil colônia à Portugal, mas o autor teve o cuidado de fazê-lo por meio de um livro cujo enredo possuía funções que estivessem além da de levar informações à metrópole.

Muitos críticos consideram que o contexto de expansão colonial tenham feito de “Kim” uma obra que privilegiou o ponto de vista dos colonos ao dos colonizados. E sim, isso realmente ocorreu. Mas, apesar de a representação da Índia tenha sido realizada por meio de uma perspectiva a ela externa, não pude constatar da parte do autor um empreendimento de tentativas de criar imagens pejorativas do país.

Outra característica da jornada empreendida por Kim é a do autoconhecimento. Ele não aprende apenas mais sobre o passado de seus pais, mas sobre si mesmo. Lembram de quando eu falei que esse livro retrata a Índia sob uma perspectiva mais externa? Preparem-se para descobertas surpreendentes ao longo do enredo a respeito da história do protagonista.

Lembram de quando eu mencionei o fato de o autor não mostrar a preocupação em trazer elementos que provessem Kim e o lama de profundidade psicológica? Bem, a princípio isso dificultou o estabelecimento de um vínculo de afeição entre o leitor e esses personagens. Contudo, o processo de descobertas que eles vivenciaram durante a jornada me fizeram gostar deles de forma que o autor não precisou fazer uso de recursos explícitos para me cativar com a construção dos personagens. E eu só pude perceber isso no final da obra.

Apesar de não buscar criar uma imagem negativa da Índia, a concepção de “Kim” esteve em pleno acordo com as teorias que endossavam o Imperialismo na época de concepção, como foi o caso do darwinismo social. Contudo, o autor não ignorava as mazelas dele oriundas, tomando-o como um mal necessário. Na obra, ele expôs diversos revezes que a prática acarretou à Índia.

Eu confesso que senti falta da parte do autor em humanizar determinadas pessoas que apenas foram vistas por Kim. Mas, conforme eu avisei, o enredo da obra aqui resenhada é narrada sob um ponto de vista mais externo, e no enredo não houve um convívio entre o protagonista e as pessoas pelo autor não humanizadas.

Além disso, apesar de partilhar de visões que ratificavam o Imperialismo, o autor em momento algum buscou retratar os ingleses do enredo como seres providos de virtudes incorruptíveis. Em alguns momentos, ele satirizou a cobiça de alguns deles.

Escrito por meio de uma linguagem bem simples, “Kim” não traz um grande suspense e nem uma narrativa eletrizante. A meu ver, a obra nem precisou disso para obter de mim o grau máximo de apreciação. O fantástico também desempenhou um papel bem importante para o enredo. Contudo, ele não rendeu aos personagens capacidades sobrenaturais.

Do meio para o fim, a obra continua a nos trazer grandes aprendizados. A meu ver, esse foi o seu maior trunfo e é aquilo que alguém que a ler tem de melhor a extrair. Embora tenha tomado Kim como um personagem irritante no começo da história, com o avançar da narrativa ele passou a representar uma espécie de salvador da Índia.

Boa parte da história de “Kim” é contada por meio de reflexivos diálogos. É por meio deles que sabemos mais sobre a Índia e sobre os personagens da obra. Confesso que em alguns momentos eles me pareceram tediosos, e que essa é a única imperfeição da obra que influenciará a nota que a atribuirei. O final poderá incomodar a muitos, mas isso não ocorreu a mim.

“Kim” é um livro excelente! Indico-o a leitores de todas as idades. A história por ele trazida é bastante cativante e comovente. As minhas leituras de Rudyard Kipling antes desse livro restringiam-se a uns contos que não me agradaram tanto. Neste livro, tive a oportunidade de entender o porquê dele ser tão importante, o que pode ser atestado pelo fato dele ser o primeiro britânico a receber um prêmio Nobel, e o mais jovem a exibir esse feito. Julgo pouco provável que alguém se arrependa de empreender a sua leitura. 


Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite


Kim (1901) | Ficha técnica

Título original: Kim

Autor: Rudyard Kipling

Número de páginas: 352

Nota: 9,5/10



 

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