[Resenha] O Caçador de Gigantes - Daniel R. Salgado

 


Sinopse: Uma misteriosa fera ataca um reino do norte e seu governante pede ajuda a Nalissa, Princesa de Tanória, maior reino do ocidente, que por sua vez segue em uma viagem para ajudar um velho amigo de seu pai. Em meio a perigos ela conhece Kael, um guerreiro selvagem e bruto, mas talvez o único capaz de derrotar a fera, um homem conhecido como Caçador de gigantes. Juntos, eles se embrenham em uma trama perigosa, que vai além de um simples monstro atacando vilas, e que envolve reis, magos poderosos e deuses, acabando por trazer à tona antigas profecias e o destino de um continente. Nalissa, em sua jornada, acaba conhecendo um outro lado do guerreiro bárbaro, um homem de extrema honra e coragem, capaz de qualquer coisa para ajudar os que ele ama. O Caçador de Gigantes é o primeiro dos Contos de Árian, onde o autor transporta o leitor para um novo mundo mítico, habitado por deuses da antiguidade do nosso mundo, gregos, celtas, egípcios e vikings, com batalhas épicas, choques culturais de povos distintos, criaturas mitológicas, traições, ganância, aventura, romance e sobretudo, a transformação de um homem quando descobre que vai ser pai. Um mundo antigo e novo, como na época do auge dos antigos impérios.


Opinião: 

O livro sobre o qual falarei nesta resenha tem início com um prólogo no qual há uma carta cujo autor nos conta sobre a origem do universo que ambientará o enredo da obra. Em muito ela lembra a criação do nosso universo segundo a mitologia greco-romana, mas aqui o autor teve o cuidado de reinventá-la e combiná-la com outras mitologias. No caso, a egípcia, a celta e a nórdica.

Um traço em comum entre a origem desse universo fantástico e a origem do nosso segundo aquelas mitologias está na dicotomia entre caos e ordem ser resolvida pela ação divina. Ela seria a responsável pela transformação do Caos em naquilo que os gregos antigos viriam a chamar de cosmos, que para nós significa ordem.

Após o prólogo, passamos a acompanhar a história de Nalissa, princesa do reino de Tanória. Era filha do rei Acássius, que ocupava o trono mais importante do continente em que se localizava. No capítulo, Nalissa recebe a visita de Cirus e Leônios, seus primos.

Ele nos apresenta a personalidade desses gêmeos. Acreditem: eram bem opostas. O que motivava a visita? Uma guerra estava a se desenhar naquela época. E isso impele Nalissa a sair do reino, algo bastante raro. Explicarei posteriormente.

Na casa de Braeden, a princesa conhece sobre a relação entre o seu pai e o proprietário do trono em que agora se encontrava. O diálogo que Nalissa teve com o rei explica como ele e Acássius conseguiram trazer estabilidade política aos seus respectivos reinos.

Em muito ela se assemelha à formação dos Estados Modernos na Europa iniciado no continente a partir da segunda metade do século XIV. À época, a sociedade feudal encontrava-se à beira da ruína nos países em que aquela formação se desenhava. Além de outros fatores, aquela ruína decorreu da incapacidade dos senhores feudais de conter revoltas camponesas e assegurar a ordem.

Em “O Caçador de Gigantes”, Acássius e o rei com quem Nalissa conversava desejavam cada vez mais poder. E a descoberta de metais preciosos na Gaéria, lugar selvagem e perigoso, estava em pleno acordo com esses interesses. E isso se deve à magia que eles possuíam.

A posse daqueles metais ocorreu de uma forma bastante similar ao que vimos na extração de riquezas na América por parte das potências europeias. Tal como em “O Caçador de Gigantes”, naquele período histórico, a posse de metais preciosos por parte de culturas “primitivas” foi algo contestado e a superioridade bélica das nações colonizadoras permitiu a referida extração.

A resistência entre os dominados também foi algo em comum. Mortes entre ambos os lados também. Assim como no caso da conquista da estabilidade política, tudo no caso dos metais preciosos possui nítidas diferenças entre aqueles eventos históricos.



Na história, a luta pelos metais portadores de magia resultou em prejuízos que deixaram um grande rancor daquele rei em relação aos povos que os possuíam. Mas o rei reconhecia que não era culpa deles e que houve erros de sua parte. Finda a conversa, Nalissa dorme nas instalações da casa de Braeden.

No dia seguinte, Nalissa aprende mais sobre aquele universo com Cirus. Na ocasião, soube de um guerreiro que matou gigantes e carregava uma poderosa arma. O avançar do enredo o desenvolve melhor, e já aviso que o desenvolvimento desse ponto é uma das melhores coisas que nele encontramos.

Após a visita ao palácio de Braeden, Nalissa e Lúcius empreendem uma viagem pelo continente. Na ocasião, o autor continua a nos apresentar os seres que habitam Mératon, o mundo que ambienta essa história. Um detalhe a ser mencionado é que muitos deles não são conhecidos pela princesa e nem pelo exército que a protegia naquela viagem.

Incidentes sem explicação ocorrem a membros da guarda de Nalissa. Eis quando a princesa passa a vivenciar diversas batalhas e a conhecer povos guerreiros que também vivem em Mératon. Enquanto lemos a obra, é difícil não levantar o seguinte questionamento: por que Nalissa sabe tão pouco sobre aquele universo?

Essa foi um dos mais importantes pontos que o desenrolar do enredo desenvolveu.

A forma como ele é contado em muito lembra um conto de fadas. A história do gênero é mais antiga do que muitos pensam. Sua primeira coletânea foi lançada no século XVII, na França, por Charles Perrault, considerado o pai da literatura infantil. Posteriormente, o gênero literário foi amplamente difundido na Europa pelos irmãos Grimm, escritores alemães.

Embora o gênero tenha se popularizado com na Europa, eles possuem grandes similaridades com contos que remontam a culturas “primitivas” da África. Os contos mais antigos que se têm registro datam de mais de 3000 anos atrás, segundo pesquisas empreendidas pela psicoterapeuta Marie-Louise von Franz.

Em solo africano, culturas “primitivas” já os transmitiam por meio da oralidade. Na Europa, antes da disseminação da imprensa inventada por Johann Gutenberg no século XV, também havia a transmissão oral de contos anteriores à consolidação da burguesia enquanto classe dominante.

Inicialmente escritos por e para adultos, os contos de fadas representaram as principais formas de entretenimento para as populações agrícolas na época de inverno. A título de curiosidade, antes de ser cristianizada, a Alemanha tinha parte dos territórios que futuramente lhe deram origem ocupada pelos povos celtas.

Eles não se converteram por livre arbítrio, mas pelo resultado das forças do Império Romano que lhes atingiram. E futuramente o neopaganismo surgiu no país como uma forma de reação aquele evento. Na Literatura, criaturas inspiradas no paganismo marcaram uma grande presença. E isso se estendeu aos contos de fada, que possuem uma nítida influência da mitologia celta.  

Conforme eu disse anteriormente, os contos de fadas eram, a princípio, contados por adultos e para adultos. Durante muito tempo as crianças padeciam de certa invisibilidade perante a sociedade. Com a ascensão do Capitalismo como forma dominante de produção, ocorreu o surgimento de novas relações entre os seres humanos.

Houve uma rígida divisão de trabalho que resultou na separação da família que sempre foi uma unidade entre camponeses e artesãos. Desde as sociedades antigas até o advento da AIDS, os vínculos entre mãe e bebê em muitos casos era inexistente devido ao costume de deixá-los sob os cuidados de amas de leite.

Com a disseminação dos contos de fada na modalidade escrita, eles passaram a servir como um importante instrumento de educação das crianças burguesas. Inclusive, os educadores das crianças menos abastadas julgavam a sua leitura nociva por temerem que eles lhes despertassem desejos espúrios. Não obstante, as amas de leite, que geralmente possuíam origem humilde, também os transmitiam a crianças pertencentes aos demais extratos sociais.

Durante muito tempo, os contos de fadas não foram levados a sério. Inclusive, o seu papel na educação já chegou a ser contestado. E, realmente, em comparação com as fábulas, os contos de fada não possuem ensinamentos explícitos. Posteriormente, essa situação foi modificada.

Antes do surgimento da ciência nos moldes que hoje conhecemos, além da Psicologia, o psicanalista Sigmund Freud analisou a relação que os contos de fadas possuem com as camadas mais profundas de nosso inconsciente. Psicanalistas que o sucederam também investigaram essa relação e propuseram teorias a respeito. Em “A Psicanálise dos Contos de Dadas”, Bruno Bettleheim as traz.


Ao longo da História, o papel social da mulher caracterizou-se por uma secundariedade. Discriminadas, já chegaram a serem excluídas da produção intelectual e muitas precisaram lançar mão de pseudôminos masculinos para publicarem suas obras e obterem reconhecimento. E isso reverberou nos contos de fadas.

Eles costumavam reproduzir idealizações das mulheres como devotas à vida doméstica, não podendo desempenhar funções além disso. Nos dias que correm, narrativas inspiradas em contos de fada rompem com aquela antiga tendência e colocam mulheres em posições que há muito eram ocupadas exclusivamente por homens. Esse foi o caso de “O Caçador de Gigantes”.

A jornada da princesa Nalissa em muitos aspectos lembra a de narrativas infanto-juvenis como Harry Potter e Percy Jackson. Tal como eles, a sua trajetória é iniciada após o surgimento de circunstâncias que a permitem conhecer criaturas mágicas as quais não conhecia. Um traço que a diferencia daqueles heróis é que o enredo de “O caçador de gigantes” não se passa no nosso mundo.

Um traço que os aproxima de Nalissa está no fato de que ambos foram privados do conhecimento da existência daquelas criaturas por motivações de seus pais. E em “O caçador de gigantes” esse também é um importante ponto desenvolvido no enredo.

Prosseguindo com a viagem, os gaérios, povo conhecedor de metais mágicos, passam a acompanhar a guarda de Nalissa. A forma como eles foram apresentados nos mostra que o limite do poder de um monarca costuma se restringir ao seu reino.

Algo que muito me agradou nesse livro foi a apresentação de diversas culturas que residem em Mératon. Ela ocorreu por meio de uma linguagem bastante similar à que encontramos em contos de fada, trazendo uma grande leveza ao enredo. E a sua brandura foi um de seus aspectos que mais me cativaram.

Outro fator que torna o emprego adequado da linguagem em um grande trunfo desse livro está na apresentação desse universo fantástico. Em livros de fantasia infanto-juvenis contemporâneos, ela muitas vezes ocorre por meio de cenas de ação. Já em livros de fantasia mais antigos, como por exemplo os de Tolkien, por meio de extensas descrições que nos levam à exaustão mental embora não diminuam a grandeza do enredo.

Em “O Caçador de Gigantes”, a apresentação ocorreu por meio de diálogos. Em alguns momentos, em meio a uma atmosfera de tensão surgida na narrativa. Em outros, com uma grande leveza que resultou no meu apreço por ler este livro. Aconselho que o façam com atenção, pois ela é fundamental para que se tenha curiosidade nas explicações que o autor vai fornecendo ao longo da obra, as quais compõem boa parte de sua extensão.

Um outro livro que me cativou por essa mesma virtude e pelas similaridades do enredo com os contos de fada foi “O feitiço do desejo” de Chris Colfer.



Conforme eu disse no primeiro parágrafo desta resenha, um traço bastante marcante desse livro é a mistura entre mitologias. Muitas criaturas presentes nelas foram reinventadas. Alguns de seus deuses também. No final do livro, o autor nos traz um glossário que nos permite entender mais sobre quem são eles nesse novo universo, o que pode ser bem útil a quem notar as diferenças entre o que estudou sobre mitologias em outros livros e aquilo que encontrou no aqui resenhado.

Outro detalhe que eu apontei no decurso do texto foi sobre o contato entre diferentes culturas ocorrido durante o enredo. Em muito ele lembrou o ocorrido após o início das grandes navegações que futuramente dariam origem à colonização das américas. Elas foram fruto de movimentos realizados na transição do final da Idade Média para o início da Idade Moderna.

À época, houve grandes descobertas por parte de Espanha e Portugal na costa ocidental da África e em ilhas do oceano Atlântico. Antes da realização dessas conquistas por parte desses países, viajantes italianos já o faziam em plena Idade Média, antes da formação dos estados-nação. O historiador suíço Jacob Burckhardt fala mais a respeito em “A cultura do Renascimento na Itália”.

Um traço bastante marcante das grandes navegações foi o choque entre culturas, o que também ocorreu na obra aqui resenhada. Tal como naquela fase, o conquistador não tinha como objetivo impor a sua cultura, mas extrair riquezas. Pelo menos a princípio, pois posteriormente ocorreu uma evangelização nos territórios conquistados.

Algo bastante similar ocorreu durante o expansionismo do Império Romano. Em Roma Antiga, acreditava-se no direito de subjugar outros povos. Contudo, em termos de cultura, ela a absorvia das populações nativas.

Em muitos aspectos esses momentos históricos lembram a realidade de Mératon vivenciada por Nalissa em “O caçador de gigantes”. Enquanto a princesa viaja e o autor aproveita para nos apresentar aquele mundo, temos contato com os choques pelos quais Nalissa passava ao descobrir novas criaturas.

Um aspecto bastante comum entre esse livro e o nosso mundo está nas diferenças culturais. Enquanto no reino de Tanória os papéis vinculados ao gênero eram bem definidos, durante a viagem conhecemos as amazonas, cuja força física despertava inveja em muitos homens. E no nosso mundo as representações da mulher também são bem diversas.

Com o avançar da narrativa, Daniel Salgado continua nos apresentando Mératon. Além da leveza da linguagem, em muitos momentos houve cenas de ação protagonizadas por Kael, um personagem que foi apresentado durante a viagem. Durante a maior parte do livro, tive a impressão que o autor teve como pretensão de ir construindo o seu universo para somente em momentos posteriores utilizar seus elementos.

Também ocorreu uma grande apresentação de mistérios ao leitor. Os mais curiosos, para mim, foram o das reais motivações daquela guerra e a do rei Acassius em privar Nalissa de tantas informações importantes. Em meio a essa apresentação, Kael acaba dividindo o centro da narrativa com a princesa..

E é a partir daqui que os mistérios criados no início da história começam a ser respondidos. O enredo adquiriu maior dinamismo, e ganhou pontos comigo. Kael pertencia aos gaérios, um povo tido como bárbaro, e o autor ganha pontos comigo ao não contar uma história protagonizada inteiramente por integrantes das “civilizações”.

Com a divisão do protagonismo entre Nalissa para Kael, o autor vai explicando melhor a origem do gaério e trazendo mais elementos que o provessem de profundidade psicológica. Ele formou um grande par com Edana, uma forte rainha mencionada na primeira metade do enredo mas que só veio a dele participar após Kael tornar-se protagonista. E as suas aparições ocorreram em excelentes cenas de ação.

A divisão do protagonismo ocorreu em meio a fuga de Kael de uma emboscada. Nalissa continuava com a sua guarda. Nos momentos em que o foco da história se retorna a Nalissa, dúvidas levantadas pela leitura do início da história também começam a serem respondidas. Outro ponto forte da história está em seu amadurecimento.

A princípio, ela era aquela típica princesa de fadas. Após o empreendimento da viagem, foi possível constatar um amadurecendo de sua parte. Aconselho que o acompanhem na história.

No início deste livro, o autor apresentou os personagens mais importantes e os principais mistérios a serem resolvidos. Essa parte foi contada de uma forma extremamente leve e com o cuidado de despertar a curiosidade do leitor nas respostas daquelas questões. Mais próximo a sua metade, ele começa a fornecer importantes respostas.

Também foi nessa parte em que ocorreram as melhores cenas de ação do seu enredo. Do meio para o fim, elas persistem, mas nem todas as dúvidas surgidas no início do livro são respondidas. Ao contrário, surgem novas pontas soltas a serem unidas e conflitos a serem resolvidos.

Um detalhe importante é que muitas coisas que ocorreram muitas coisas além do campo de visão de Nalissa e Kael. E mais próximo ao fim ocorrem eventos diretamente relacionados a eles. As respostas não foram satisfatoriamente respondidas, acredito eu que para melhor o serem nos livros seguintes da série.

E isso ocorreu de uma forma tão estratégica que não há como eu não enaltecer esse aspecto da obra. Ela termina de forma completamente eletrizante, deixando-nos com a sede pelo livro seguinte. E as cenas de ação contribuíram bastante para a criação desse ritmo, o qual teve como o ápice o desfecho.

Embora esse livro mais voltado ao público infanto-juvenil, eu o indico a todos os públicos. Inclusive, acredito que ele seja capaz de despertar um grande interesse em outros livros do gênero inspirados em narrativas de contos de fadas. A continuação desse livro já foi lançada pelo autor no formato físico, e em breve ocorrerá o seu lançamento em e-book. Daniel Salgado também é o autor da obra “Ilha de deuses e santos”, vencedora de um prêmio aqui no Brasil.


Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite


O caçador de Gigantes (2006) | Ficha técnica:

Autor: Daniel R. Salgado

Páginas: 296

Nota: 10/10



Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

[Resenha] O seminarista - Bernardo Guimarães

[Resenha] O Mandarim - Eça de Queiroz

[Resenha] O cometa é um sol que não deu certo - Tadeu Sarmento