[Resenha] Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra - Mia Couto
Sinopse: O estudante
Mariano volta à sua terra natal para o funeral do avô e se descobre em meio a
intrigas e segredos familiares. Em Luar-do-Chão, uma misteriosa ilha de
acontecimentos fantásticos, ele precisa solucionar um conflito pessoal
semelhante ao dilema da África pós-colonialismo. O moçambicano Mia Couto é um
dos principais autores africanos de hoje.
O retorno de Marianinho a Luar-do-Chão não é exatamente uma volta às suas
origens. Ao chegar à ilha natal, incumbido de comandar as cerimônias fúnebres
do avô Mariano - de quem recebeu o mesmo nome e de quem era o neto favorito -,
ele se descobre um estranho tanto entre os de sua família quanto entre os de
sua raça, pois na cidade adquiriu hábitos de um branco. Aos poucos, Marianinho
percebe que voltou à ilha para um renascimento.Uma série de intrigas e de
segredos familiares envolvem o pai do protagonista, Fulano Malta, sua avó
Dulcineusa, os tios Abstinêncio, Ultímio e Admirança, e também as nebulosas
circunstâncias em torno da morte de sua mãe, Mariavilhosa. O rapaz descobre
também que o falecimento do avô permanece estranhamente incompleto.Trata-se de
um momento de passagem, crucial para o protagonista e para o seu lugar de
origem. Luar-do-Chão encontra-se num estado de abandono, decadência e miséria.
Trata-se também de um impasse cultural, religioso e político, que guarda
correspondência com a situação social da África de hoje.Nessa enigmática
Luar-do-Chão, onde um rio armazena a memória dos espíritos e a terra sofre com
feitiços arcaicos e modernos, a tarefa de Marianinho é encontrar uma forma de
levar adiante uma história que, além de pessoal e familiar, na África
pós-colonial é também política e de destino humano.
Opinião: " Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra"
Nascido em
Moçambique, o escritor Mia Couto despontou na década de 80 como um grande
renovador da Literatura do seu país. À época, a luta contra a dominação
estrangeira e pela afirmação de uma identidade nacional manifestou-se com
grande veemência em produções literárias. E em “Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra” temos a oportunidade de entrar em contato com esse espírito.
A sua
história começa quando Marianinho recebe a notícia de que o seu avô faleceu e
vai ao seu enterro. Ele viajou na companhia de seu tio Abstinêncio, sabendo de
antemão que o seu pai já se encontrava no local da cerimônia. Durante a viagem,
Marianinho revê familiares e diante da seguinte dúvida: seu avô realmente
morreu?
Lançado em
2002, a publicação “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” ocorreu 27
anos após a independência de Moçambique em relação a Portugal. Após a
independência do Brasil, Portugal decidiu elevar a exploração da colônia
africana, causando grande descontentamento em seus habitantes.
A situação
se agravou quando Salazar assumiu o poder em Portugal e implementou uma
administração com nítidas inclinações fascistas. Foi esse um dos principais
fatores envolvidos na eclosão na guerra civil que permitiu a independência no
país. A libertação de Moçambique foi um marco para a sua Literatura.
Antes, ela
era marcada por um sentimento de entusiasmo e orgulho pela metrópole,
Portugal. Era produzida sob o olhar do colonizador. Depois, o seu foco se
deslocou para o colonizado, dando-lhe voz. Na obra aqui resenhada, Mia Couto
deu visibilidade à situação em que Moçambique se encontrava após o seu recente
passado colonialista.
Durante a
viagem, o autor vai apresentando o país e correlacionando o seu presente ao seu
passado enquanto colônia. As suas descrições são bem breves, mas
suficientemente detalhadas. Afinal, é habitual que em uma história o local onde
os personagens se fixam sejam melhor descritos que os caminhos a que o levam.
Enquanto a
viagem era narrada, Mia Couto nos apresenta o pai de Marianinho e alguns de
seus tios, Ultímio e Abstinêncio. Chegando de viagem, o autor nos leva ao
convívio familiar de Dulcineusa, a avó do protagonista. Apesar das dúvidas
quanto a Mariano haver, ou não, falecido, Dulcineusa afirmava com grande
convicção que sim.
Em seguida,
incube a Marianinho o dever de guardar as chaves de Nyumba-kaia. O que explica
essa firme convicção de Dulcineusa quanto a morte de seu marido? Essa dúvida
mantém o mistério durante toda a narrativa, e sem ela as principais
reviravoltas desse romance não teriam sido possíveis.
Amílcar,
médico de Mariano, disse a Marianinho que o seu avô encontrava-se clinicamente
morto. Seus tios discutiam sobre o destino do avô do protagonista. Em paralelo,
Dulcineusa sentia a necessidade de se mudar diante do temor de ser acusada de
bruxaria.
Ao longo da
história, Mia Couto nos conta sobre como era a vida de Dulcineusa e dos tios de
Marianinho antes do evento ocorrido a Mariano que motivou a reunião dos
familiares. O fez de modo a criar mistérios a serem compreendidos ao longo da
história. Mas o mais curioso deles foi o da relação entre Mariano e Dulcineusa.
Não duvide
das habilidades de Mia Couto de omitir informações de forma estratégica para
somente nos momentos adequados fornecê-las. Enquanto nos conta sobre a história
da família, o autor aproveita para expor uma realidade de seu país que em muito
se assemelha ao nosso: a da multiculturalidade.
Diversos
povos participam da composição étnica de Moçambique. Portugueses, os Bantus, que
povoam da África do Sul ao Sul do Saara, e diversos povos provenientes da Índia
e do Oriente Médio. A miscigenação foi algo inevitável no país. E sobre isso
Dulcineusa conversou com Marianinho.
Fundado em
1962, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) foi um partido que teve o
objetivo de lutar pela independência do país. Mia Couto participou do
movimento, assim como alguns de seus familiares. “Um rio chamado tempo, uma
casa chamada terra” nos mostra as marcas que o colonialismo deixou em Moçambique.
Mas o autor
não apenas ilustrou essa realidade. Os personagens da obra estavam imersos no
contexto político do país e dele participavam, mostrando o potencial de promover
mudanças em sua História. Muitos dos dramas humanos contidos nesse livro estão
inseridos nesse contexto.
Mia Couto
reuniu o útil ao agradável. Conseguiu me entreter com esses dramas e ainda
despertou a minha curiosidade a respeito da história de Moçambique. Mesmo após
a independência, algumas relações entre o país e Portugal se mantiveram.
Tanto que
ainda hoje os maiores investimentos comerciais de Moçambique são provenientes
de sua antiga metrópole. E Mia Couto trouxe personagens envolvidos nessas relações,
além de mostrar que a independência não foi a solução para todos os problemas
do país. Outra realidade do país retratada pelo autor foi a relativa ao convívio
de diversas religiões.
Mia Couto
não apenas ilustrou a diversidade religiosa do país. Em determinados momentos
da obra, o conhecimento de proveniente de cultos africanos foi empregado de
forma medicinal em convívio com o conhecimento científico. A história também
contém uma série de metáforas que remontam à bíblia cristã.
Com o
avançar da narrativa, a temática da infidelidade conjugal é trazida ao enredo.
E nela vimos que os clérigos podem, mas nem sempre conseguem, coibir os casos
desse tipo de infidelidade entre os fiéis ao Cristianismo. E que os clérigos
podem, também, participar do contexto político do país
A abordagem
desses temas pode ser explicada pelo contexto político e histórico em que
Moçambique se encontrava na época de sua concepção.
Afinal,
como diria Michel Foucault, o discurso, seja ele oral ou escrito, não pode se
libertar das amarras do período histórico em que foi produzido. Após um longo
processo de colonização, marcado por uma exploração econômica e por uma
defasagem étnica no país, ocorreu uma espécie de silêncio sociocultural em Moçambique. E a independência do país em relação à Portugal teve como consequência um
apagamento da identidade cultural do país.
Eis por que
foi tão importante Mia Couto tentar resgatar a história e o valor dos povos que
habitavam Moçambique. Uma grande virtude desse resgate por parte do autor
reside no fato de que ele não ignorou a herança portuguesa. Ele apenas não
priorizou a história dos colonizadores, que acreditavam levar a civilização à
África ao explorá-la.
Acredito
que isso não lhe tenha sido fácil. Afinal, Mia Couto foi educado dentro dos
moldes de uma educação portuguesa. Ele não se limitou a retratar os valores
culturais dos povos que habitam o seu país antes do início da colonização
portuguesa. Ele fez severas críticas ao estado em que Moçambique se encontrava
após a independência.
Luar-do-Chão
representou uma metáfora para Moçambique nessa história. Nela, vimos o
multiculturalismo do país ser muito bem representado. Nessa perspectiva, Mia Couto também retratou as desigualdades relativas à competição
pela autoridade política e social dentro da ordem do mundo.
Durante a
narrativa, o autor nos mostrou pessoas que combatiam a exploração do homem pelo
homem. Era um espírito do qual a FRELIMO estava imbuído antes e depois da
independência de Moçambique. E Mia Couto dela participou.
Ele também
retratou e problematizou o risco da espoliação dos poucos recursos de
Moçambique que restaram após o fim da colonização portuguesa. Houve um momento
da história em que determinado personagem manifestou a intenção de vender
Nyumba-Kaya a investidores estrangeiros.
Os
personagens desse livro mostraram uma profundidade psicológica que chamou
bastante a minha atenção. O que me surpreende nisso é o fato deles não haverem
mostrado a necessidade de extensas descrições para serem providos dessa
virtude. Ao contrário: o autor fez um ótimo uso da omissão de informações para revela-las
somente em momentos estratégicos.
Embora não
tenha desempenhado uma função muito central para essa história, o fantástico
marcou uma presença notável em “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”.
Um dos exemplos mais ilustrativos de sua aparição está nos momentos em que
Marianinho recebia cartas de autoria desconhecida.
A
naturalidade com que os personagens encaravam o fantástico causou-me certo
estranhamento. Talvez porque o sobrenatural no nosso mundo seja algo estranho e
no desses personagens não. Mas foi durante esses momentos que Mia Couto
respondeu a diversas perguntas sobre o avô do protagonista e sobre os dramas
humanos que os demais personagens da obra vivenciavam. Além de fornecer
importantes explicações, eles também criaram ganchos para um futuro
fornecimento de mais esclarecimentos.
Hoje Moçambique fala uma grande variedade de idiomas, apesar do Português ser o oficial e proferido por 40% de seus habitantes. Na obra, Mia Couto trouxe um glossário com termos próprios do país. Gostei de como o autor retratou o convívio da cultura do colonizador com a do colonizado.
Apesar de a
obra possuir uma importância histórica sem par e uma riqueza de metáforas
inimitável, alguns aspectos do enredo não me agradaram. Embora o autor não tenha se proposto a escrever uma história similar a um romance policial, o mistério que ele criou em relação aos dramas humanos e à história desses personagens não
conseguiu despertar em mim uma grande curiosidade.
O enredo da
história foi muito bem construído e não houve pontas soltas. O caso de
infidelidade conjugal contido no livro foi muito bem explicado, mas não foi um
caso agradável de ser lido como muitos outros contidos em outros livros.
Acredito que o autor não tenha se proposto a isso, mas o enredo dessa história
poderia ter sido mais cativante caso ele inserisse uma dose maior de polêmica.
“Um rio
chamado tempo, uma casa chamada terra” termina com uma grande metáfora sobre
Marianinho precisar atuar como um guardião das tradições de Moçambique, devendo resgatar
a dos colonizados quando possível para apagar as marcas de seu passado
colonialista. Apesar das imperfeições que eu apontei, esse livro foi sem sombra
de dúvidas um dos melhores que eu li neste ano e, talvez, um dos melhores que
eu já li na vida. Eu o indicaria a qualquer pessoa, mas aquela que mostre algum
grau de empatia em relação aos males causados pela colonização no continente
africano é a que possui o maior potencial de apreciar esta obra.
Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002)| Ficha técnica:
Autor: Mia Couto
Páginas: 262
Nota: 9/10
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