[Resenha] A Filha do Capitão - Alexandre Pushkin
Sinopse: Passaram-se
algumas semanas, e minha vida na fortaleza Bielogórskaia tornou-se não apenas
suportável, como até agradável. Na casa do comandante, era recebido como
parente. Marido e mulher eram as pessoas mais respeitáveis. Ivan Kuzmitch, que
de filho de soldado chegara a oficial, era um homem simples, sem instrução, mas
muito honrado e bom. Sua esposa o comandava, o que combinava com a
despreocupação dele. Maria Ivánovna logo parou de se esquivar de mim. Ficamos
nos conhecendo. Encontrei nela uma moça ajuizada e sensível. De forma
imperceptível, apeguei-me à boa família...
Opinião: “A
Filha do Capitão”
Nascido em
Moscou, Alexandre Pushkin descendia de uma família pertencente à nobreza russa que possuía registros de sua ancestralidade desde o século XII. Aos 11 anos de
idade, enquanto ainda estudava no liceu imperial em Tsarskoye Selo, Pushkin já
tinha destaque nos círculos literários. Nos dias que correm, o autor é
considerado o maior poeta russo e o pai da Literatura russa do século XIX,
tendo apresentado ao país todos os gêneros literários europeus e influenciado
romancistas como Ivan Turguêniev e Liev Tolstói. Nesta resenha, falarei sobre “A
Filha do Capitão”, uma de suas mais conhecidas obras.
Na trama,
Piort Andrêitch, Petrucha, é entregue às mãos de Savélitch, seu preceptor, aos
5 anos de idade. A relação de Piort e Savélitch era pacífica, embora algumas
situações deixassem claro que a atuação do preceptor não bastasse para que
Petrucha tivesse um comportamento adequado. E houve uma ocasião em que o
protagonista desta história apostou bens de sua família e os perdeu, causando
grande remorso em seu instrutor.
Quando
cresce, Piotr é enviado à fortaleza Bielogórskaia. Ele tinha grandes projetos
para a sua vida no exército, e na fortaleza chegando é recebido por Ivan
Kuzmitch. Em certa ocasião, enquanto almoçava com a sua família, Piotr conhece
Maria Ivanovna, a filha do capitão. E por ela Petrucha se apaixona.
“A Filha do
Capitão” é um romance histórico ambientado na Rússia czarista da segunda metade
do século XVIII. À época, mais de 80% da população era constituída por
camponeses. Séculos antes, ocorreu a unificação do país e o primeiro imperador
se intitula Czar, Ivã III. Durante muito tempo, e ainda durante o momento em
que o enredo dessa obra se passa, a Rússia mantinha uma firme relação com a
igreja ortodoxa do período bizantino.
O
militarismo também exercia uma grande influência naquela sociedade. A Rússia
era uma grande potência europeia, e isso a expunha a guerras. No país, os
participantes do exército eram recrutados dos círculos da própria aristocracia.
Vimos isso muito bem em “A Filha do Capitão”.
Na
fortaleza Bielogóskaia, Piotr viu Vassilissa Iegórovna, a esposa do Ivan,
governar a fortaleza como uma dona de casa governa o seu lar. Ivan Kuzmitch
chegou à posição em que se encontrava após enfrentar a dura disciplina dos
soldados recrutados para servirem ao exército. Assim mesmo, a fortaleza vinha
se tornando um ambiente bem agradável para Petrucha.
Ele foi
promovido a oficial. Enquanto narra a vivência de Piotr na fortaleza, Pushkin
nos apresenta à Rússia de seu tempo. Era um país marcado por uma grande
diversidade étnica, e ainda é. O autor também mostrou as peculiaridades da
cultura do país decorrentes da presença da igreja ortodoxa bizantina.
Uma delas
está no casamento. Nas igrejas católicas orientais, há diferenças entre os
ritos de casamento em relação à Roma. Neles, há uma autonomia em relação ao
rito católico ocidental. Na obra, vimos o casamento ser representado como a
formação de um “novo reino”, o que ocorre nas coroações dos casamentos da
religião.
Um dos
primeiros episódios marcantes de Piotr na fortaleza foi o de um duelo que
travou com Ivan Ignátitch. O duelo teve repercussões negativas e Vassilissa os
proíbe na fortaleza. Em paralelo, Maria Ivanovna passa a ter pretendentes.
Contudo,
era por Piotr que ela nutria profundos sentimentos. Isso promovia em Petrucha
um arrefecimento de sua raiva quanto aos personagens com os quais vinha se
desentendendo. A sua família, por outro lado, não via com bons olhos um
envolvimento entre ele e Maria Ivanovna.
Essa obra
pertence à fase dourada da Literatura russa. Na realidade, foi o próprio
Pushkin quem a inaugurou no país. À época, o Romantismo ainda estava em sua
periodicidade. A estruturação de “A Filha do Capitão” é bem similar ao dos
romances de cavalaria que desde o século XIII eram cada vez mais escritos no
romance em prosa.
Na obra,
vemos Piotr, o herói, em busca de sua donzela em apuros, Maria Ivanovna. Não
entrarei em maiores detalhes a respeito porque muitos poderão se incomodar. Nas
obras do Romantismo, essa estruturação foi em diversas vezes adaptada.
Embora seja
considerado o principal representante do Romantismo russo, diversos críticos
divergem quanto ao fato de Alexandre Pushkin ser um romântico. Alguns consideram que o seu
estilo seja mais próximo ao do Neoclassicismo e outros que ele caminha para o
Realismo. E, no romance, há uma aparente ruptura entre Piotr e o medievalismo
das produções românticas, nas quais os heróis eram fiéis à pátria.
Lendo o
livro, é possível me entender. E já aviso que essa é uma de suas melhores
partes. O enredo desse livro tem como pano de fundo a revolta de Pugatchov. Ela
foi uma das revoltas que mais abalaram as estruturas dos czares. Para
historiadores, é considerada a maior revolta camponesa da História do país.
A rebelião
decorreu da insatisfação dos camponeses em relação à supressão de seus direitos
e benefícios por parte da nobreza e do estado. Tão difícil foi contê-la que a
rainha Catarina II a denominou com “o grande terror do século XVIII”. Na obra,
Pushkin nos conta sobre como a fortaleza de Bielogórskaia se encontrava diante
desse grande evento.
Ivan
Kuzmitch preparava-se para entrar em conflito bélico contra a rebelião. A
fortaleza temia derrotas, tendo em vista as grandes dificuldades para debelar a
revolta. Inclusive, outra fortaleza próxima da de Bielogórskaia fora subjugada
pelos insurgentes.
Piort temia
pela sua vida e pela de Maria Ivanovna. E a donzela foi enviada à Oremburgo,
agravando os receios de Piotr. Quando Pugatchov chega à fortaleza, Petrucha
precisa se preocupar com a própria vida. A chegada do antagonista impôs uma
grande prostração a Piotr, que precisou concedê-la.
Nesse
momento, Pushkin expôs a crueldade de Pugatchov em relação aos territórios que
invadia. O fez de modo maniqueísta. Explicarei posteriormente. Mas, para a
sorte de Savélitch, Piotr consegue escapar da fortaleza com vida.
A dúvida a
respeito das condições sob as quais Maria Ivanovna se encontrava causava grande
preocupação a Petrucha. Ele tinha diante de si uma Rússia imersa em uma
situação de carestia e más condições de infraestrutura. Sob essas
circunstâncias, Piort recebe uma carta de sua amada.
Nela, ela
lhe conta sobre estar em apuros e forçada a se casar com um homem com a qual
não queria se casar. E isso motivou o protagonista a cavalgar rumo ao seu resgate.
Finalizo por aqui revelações a respeito do enredo, mas é a partir daqui que
vemos os momentos de maior tensão da história.
O livro
traz uma visão maniqueísta da rebelião de Pugatchov. Embora em alguns momentos
tenha dado visibilidade à degradante situação da Rússia czarista, essa história
é claramente contada sob o ponto de vista da nobreza do país. E isso não
surpreende, tendo em vista que o próprio Alexandre Pushkin pertencia a essa
classe social.
Segundo a
memória popular, Pugatchov era um pretendente-libertador, sendo comparado ao
próprio Jesus Cristo. Sempre que visitava aldeias, adquiria a fama de herói,
sendo saudado pelas massas como um soberano. Em “A filha do capitão”, ele foi
retratado como um vilão. E isso estava em pleno acordo com os interesses da
nobreza, que desejava apenas manter os seus privilégios perante os servos.
A revolta
de Pugatchov também foi retratada sob o ponto de vista da classe social a que
pertencia o autor da obra. Embora objetivasse pôr fim aos privilégios da
nobreza russa e às péssimas condições a que seus trabalhadores estavam submetidos,
o foco dessa história está nos prejuízos que a aristocracia do país sofreu.
Durante a
grande parte da história, Pushkin mostrou a rebelião como a causa da morte de
nobres. E ela realmente o foi, além de ceifar a vida de membros do clero. Mas
também houve mortes e prejuízos nos setores envolvidos com a mobilização da
rebelião, o que não foi retratado nessa obra.
A sua
leitura foi, para mim, bem simples. De tudo o que li da Literatura russa, esse
livro foi o que me custou menor esforço. A única dificuldade que ele impõe é
decorrente dos nomes dos personagens, os quais não são familiares a maioria dos
leitores brasileiros. Anota-los vale a pena para não se perder em relação ao
enredo.
Embora
possua uma quantidade considerável de personagens, o foco do autor está na
construção de Piotr. Não consigo explicar, mas os demais personagens da obra não
me pareceram rasos mesmo sem receberem grande atenção por parte de Pushkin.
Conforme já
disse, há uma aparente ruptura entre Piotr e os heróis medievalistas. Neles,
encontramos uma grande devoção à pátria. Em Piotr também a encontramos, mas
vemos nesse personagem grandes dilemas entre valores honrosos e os sentimentos
que ele nutria por Maria Ivanovna.
Não seria
um exagero afirmar que esse seja um livro sobre amor e traição. Lendo a obra, é
possível me entender. Embora Pugatchov seja o maior responsável pelas mortes
desta obra, o seu maior vilão para mim é representado por um personagem que desde
a chegada de Piotr à fortaleza mostrava uma grande inclinação para a traição.
Acredito
que vocês não enfrentem grandes dificuldades para reconhece-lo enquanto lerem a
obra. Mas foi para derrota-lo e resgatar Maria Ivanovna que Piotr fez alianças inimagináveis.
Menciono esses fatos apenas para despertar a curiosidade do leitor desta
resenha.
Qualquer
semelhança entre o enredo de “A Filha do Capitão” e a biografia de Alexandre
Pushkin talvez seja mais do que mera coincidência. Piotr, assim como Pushkin,
recebeu uma educação típica da nobreza, embora cada um nos moldes de seu tempo.
Após a conclusão da leitura da obra, aconselho que se leia sobre a relação do
movimento Dezembrista e Pushkin para que se perceba as semelhanças de sua
história com a do protagonista da obra aqui resenhada.
Esse é um
livro menos comentado do autor aqui no Brasil. Vemos poucas resenhas em blogs e
canais do Youtube. Lê-lo foi uma grande experiência, e isso explica por que o
indico a todos os públicos. Porém, aqueles com interesse em começar a ler a
Literatura russa ou com algum apreço por romances de cavalaria são os que,
acredito, tenham maior potencial de tomar essa obra como uma leitura marcante.
Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite
Objetos cortantes (1836) | Ficha técnica:
Autor: Alexandre Pushkin
Páginas: 144
Nota: 10/10
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