[Resenha] Objetos Cortantes - Gillian Flynn

 


Sinopse: Uma narrativa tensa e cheia de reviravoltas. Um livro viciante, assombroso e inesquecível. Recém-saída de um hospital psiquiátrico, onde foi internada para tratar a tendência à automutilação que deixou seu corpo todo marcado, a repórter de um jornal sem prestígio em Chicago, Camille Preaker, tem um novo desafio pela frente. Frank Curry, o editor-chefe da publicação, pede que ela retorne à cidade onde nasceu para cobrir o caso de uma menina assassinada e outra misteriosamente desaparecida.

Desde que deixou a pequena Wind Gap, no Missouri, oito anos antes, Camille quase não falou com a mãe neurótica, o padrasto e a meia-irmã, praticamente uma desconhecida. Mas, sem recursos para se hospedar na cidade, é obrigada a ficar na casa da família e lidar com todas as reminiscências de seu passado. Entrevistando velhos conhecidos e recém-chegados a fim de aprofundar as investigações e elaborar sua matéria, a jornalista relembra a infância e a adolescência conturbadas e aos poucos desvenda os segredos de sua família, quase tão macabros quanto as cicatrizes sob suas roupas.


Opinião: "Objetos Cortantes"

Lançado em 2012, “Garota Exemplar” não demorou a conquistar uma grande popularidade. Em 2014, ocorre o lançamento da adaptação cinematográfica do romance de Gillian Flynn e anos depois eu o leio em meio a grande repercussão da obra. Nesta resenha, falarei sobre “Objetos cortantes”, uma obra mais antiga da autora que em 2018 deu origem a uma minissérie exibida na HBO e também vem mostrando uma grande repercussão aqui no Brasil.

Na trama, vemos Camille Preaker, jornalista do Daily Post, receber como tarefa a investigação de uma série de assassinatos que tem ocorrido em Wind Gap, sua cidade natal para, em seguida, escrever uma matéria a respeito. A tarefa foi delegada por Frank Curry, seu chefe. A jornalista empreende a viagem para cumpri-la.

O livro pode ser considerado um thriller psicológico. Assim como muitos outros livros do gênero, as suas distinções em relação ao romance policial não são tão nítidas. A história começa com o lançamento de um caso a um investigador. Na obra, de vários casos.

Tendo sua origem no século XIX, os romances policiais costumam ter como foco o investigador, que geralmente era representado por uma pessoa com grandes capacidades cognitivas. Muitos dos romances policiais contemporâneos rompem com essa tendência e trazem pessoas com histórias problemáticas. E é isso que temos em “Objetos cortantes”, mas com uma jornalista em lugar de um detetive.

Outra ruptura que encontramos nos romances atuais está no fato de o foco investigativo deslocar-se do investigador para o criminoso. E é mais ou menos por aqui que a obra aqui resenhada torna a se distanciar das narrativas policiais. Após ser encarregada por Curry a investigar uma série de assassinatos, Camille retorna a Wind Gap e passa a conviver com a sua antiga família.

Ao mesmo tempo em que investiga a história de vida de Natalie Keene e Ann Nash, crianças que foram assassinadas e tiveram a sua dentição arrancada, Camille convive com Adora Creelin, sua mãe. Dentro desse convívio, o foco da narrativa se desloca da investigação para a vida da jornalista e de sua família.

Devo confessar que a vida de Camille e sua família a princípio não conseguiu despertar o meu interesse. Nesses momentos, o meu maior desejo era o de que o foco narrativo retornasse à investigação. Eis quando acontecimentos polêmicos envolvidos com a história da família da protagonista passaram a despertar a minha curiosidade.

Quando tinha apenas 13 anos de idade, Camille perdeu a sua irmã, Marian. Gillian Flynn cria um grande mistério em relação à morte de Marian, e deixa pistas bem sutis a respeito. Prepare-se para descobertas surpreendentes. Adora também tinha outra filha, Amma, a qual era meia-irmã de Camille.

A inserção de Amma no enredo desempenhou uma grande importância, tendo em vista que a sua faixa etária era a mesma das meninas mortas, permitindo um cruzamento da parte investigativa da obra com a parte que versa sobre a família da protagonista. Conforme já disse, durante muito tempo eu achei que o foco narrativo deveria se restringir à investigação e que a vida de Camille e sua família não deveria ter tanta visibilidade.

Após concluir a leitura da obra, mudei de ideia. Explico. Quando desempenhamos uma profissão, após cumprirmos os nossos deveres diários retornamos ao convívio familiar. E foi exatamente isso que Gillian Flynn mostrou: a investigação do caso e o convívio familiar como partes de uma mesma rotina.

Além disso, o avançar da história revelou um grande entrelaçamento entre ambas as partes. Inclusive, contribuiu para a grande sensação de surpresa que a resolução do caso suscitou. Durante a investigação, a autora narrou diversos eventos que pareciam desnecessários à trama. Isso me incomodou durante a leitura, mas o desfecho também promoveu em mim uma mudança de ideia.

Enquanto fazemos uma pesquisa, é habitual que encontremos coisas irrelevantes em relação aquilo que desejamos, de fato, encontrar. E nisso Gillian Flynn ganha pontos ao trazer verossimilhança ao enredo. Além disso, muitos dos achados de Camille durante a investigação operaram como falsas pistas para a resolução do caso, contribuindo para a sensação de surpresa que ela causou.

Durante a investigação, vemos a jornalista fazer todo o possível para descobrir o autor dos crimes. Camille entrou em contato com a família das vítimas em busca de todas as informações possíveis. Em determinados momentos, chegou a mentir para obter informações com os familiares de Natalie e Ann.

Um aspecto em comum entre o histórico de Natalie e Ann estava no fato dela despertar raiva em determinadas pessoas com quem conviviam. O desejo por vingança também foi muito bem investigado por Camille. Outro aspecto dos casos que levanta suspeitas no leitor está no fato de que a imposição de padrões de beleza e o sentimento de inveja por ela despertada serem sugeridos durante quase toda a história.

Há muitas e muitas pistas falsas na investigação contada por esse thriller, e isso encontramos na maioria dos romances policiais. E elas foram muito bem construídas. E os momentos em que a vida de Camille e sua família são narrados com o tempo passam a se relacionar com a investigação. E isso explica por que o tédio que esses momentos impuseram a mim no começo da história foi desfeito durante o enredo.

O assassinato de Natalie Keene e Ann Nash aparentemente ocorreu de forma brutal, tendo em vista as condições em que elas foram encontradas e o fato de terem os seus dentes arrancados. Nela, vimos a força bruta e o machismo sendo usados como falsas pistas. No final, vimos que a morte dessas meninas foi causada por criações do homem que deveriam apenas ampliar a sua expectativa de vida e motivada por aspectos sociais que, apesar de serem explorados durante toda a história, não despertaram em mim a menor suspeita de que pudessem estar relacionados ao crime.

A temática feminista marcou grande presença na obra. Ela tem aparecido de forma clichê em muitos livros do gênero, mas em “Objetos Cortantes” a encontramos vinculada a temas menos visitados. Durante a investigação, Camille pôde avistar os revezes que a imposição de padrões de beleza podem custar às mulheres.

Isso ocorreu a partir do momento em que ela impôs castigos físicos a si própria em decorrência da insatisfação quanto ao próprio corpo. Ocorreu quando meninas com a idade de Natalie e Ann foram retratadas como portadoras de distúrbios alimentares como a bulimia. E ocorreu quando Gillian Flynn nos mostrou o quão perigosa pode ser a inveja que uma mulher portadora de transtornos de caráter nutre ao não se enquadrar a esses padrões.

A autora também problematizou a crença na superioridade física masculina ao transforma-la em uma falsa pista para a resolução do caso. Aliás, ela nos mostrou que uma grande violência não precisa de uma grande força física para ser letal. Ainda dentro da temática feminista, Gillian Flynn expôs algumas consequências da visão de que há a necessidade da vivência da maternidade por parte das mulheres.

Por meio de Camille, Gillian Flynn deu visibilidade à sexualidade feminina. Camille mostrava um grande engajamento na resolução do caso para escrever a matéria para o Daily Post, mas em diversos momentos se entrega ao sexo. Poderia muito bem ser uma personagem de uma obra do Realismo ou do Naturalismo.

Gostei bastante da ambientação dessa história. A autora nos mostrou uma grande diversidade de ambientes de uma mesma cidade. Tendo em vista a sua inexistência no Missouri, podemos constatar um grande esforço de sua parte ao expor a sua construção histórica com vistas a dar verossimilhança ao enredo.

A profundidade psicológica também desempenhou um importante papel na obra. Camille sofria de problemas psicológicos, e Gillian Flynn fez questão de retratar as aflições da personagem. A princípio, isso me pareceu algo bem tedioso, mas a resolução do caso deixou clara a sua relação com a investigação.

Poucos aspectos da obra me incomodaram. As explicações a respeito de como os crimes foram cometidos foram fornecidas de forma bem satisfatória. As motivações, por outro lado, não. Pelo menos para mim. A autora correlacionou o crime ao transtorno de caráter de seu autor, mas as explicações de suas motivações foram, para mim, insatisfatórias.

Isso não altera o fato de “Objetos cortantes” ter sido uma grande leitura para mim. Ao longo de todo o enredo Gillian Flynn forneceu pistas a respeito da autoria do crime, mas nos conduziu a descobertas surpreendentes por haver levantado suspeitas que, embora fossem bem mais prováveis, eram falsas. Enquanto lia essa obra, as pistas verdadeiras encontravam-se nas partes do enredo que eu julgava tediosas, o que me fez ignorá-las. Após concluir a leitura, fiquei com um grande desejo de relê-la levando essas partes a sério.

Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite


Objetos cortantes (2008) | Ficha técnica:

Título original: Sharp objects

Autor(a): Gillian Flynn

Páginas: 254

Nota: 9/10



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