[Resenha] Do Amor e Outros Demônios - Gabriel García Marquez

 


Sinopse: Do Amor e Outros Demônios vem de uma inspiração de quase meio século. Mas sua história vai além. García Márquez viaja até fins do século XVIII, em pleno vice-reinado da Colômbia, esta ainda colônia da Espanha, para compor uma história de amor, cercada de mistério, sortilégio e feitiçaria, culminado num processo instaurado pela inquisição.


Opinião: "Do Amor e Outros Demônios"

A história desse livro se passa em Cartagena das Índias, cidade colombiana. No período em que ela ocorre, a Colômbia era marcada por uma grande diversidade étnica e religiosa. Séculos após o início da colonização espanhola na América Latina, tornam a ocorrer os primeiros registros de raiva na região. Nesse mesmo cenário, o país mostrava uma grande presença da Igreja Católica e da Santa Inquisição. Imaginem um enredo construído nesse contexto.

Ele começa a ser contado quando Sierva María de todos Los Angeles sofre uma mordida de um cachorro raivoso. Filha do marquês de Casalduero e de Bernarda Cabrera, o incidente à menina ocorreu após ela comprar uma fieira de guizos para a festa de seu aniversário de doze anos na companhia de uma empregada.

A história se passa nos tempos presente e passado. O passado auxilia a explicação do presente e o presente revela os impactos que as atitudes cometidas no passado acarretaram aos seus personagens.

Bernarda de Cabrera era uma esposa sem títulos do marquês de Casalduero. O livro explica a origem de seu relacionamento com o marquês. Menciono esse fato para despertar a curiosidade do leitor, mas não explicarei como se deu essa origem porque as explicações deste livro são o que lhe tornam tão interessante de ser lido.

Porém, é preciso mencionar que Sierva María não tinha o amor de nem um dos seus pais. Os motivos podem ser melhor compreendidos a partir da leitura do livro. Mas a garota não habitava o mesmo recinto do marquês de Casalduero e, por conviver com os escravos, era praticante de cultos africanos, algo repelido pela Igreja Católica.

Dominga de Adviento comandava o lar dos escravos e representava uma ponte entre eles e o mundo de seu proprietário. Foi ela a responsável pela criação de Síerva Maria e pelo que a menina sabia sobre os cultos africanos. Apesar da indiferença dos pais, após a mordida do cachorro o marquês de Casalduero mostra grande preocupação com Sierva María e decide procurar ajuda para trata-la. 

O livro possui apenas cinco capítulos, mas no interior de cada um deles há pequenas demarcações que permitem ao pretendente a sua leitura pausá-la sem precisar lê-los por completo de uma só vez. A história aqui contada não foi escrita para ser lida tão brevemente. Porém, o ritmo da narrativa foi adequado para o que o autor quis contar.

O aspecto desse livro que mais me agradou foi a construção dos dramas humanos. É possível que também o seja para quem decidir lê-lo. Gabriel García Marquez sabe como despertar a curiosidade do leitor a respeito desses dramas.

É difícil não se questionar sobre por que Sierva María não tinha a afeição dos seus pais ou quais eram as reais motivações de sua mãe ao se casar com o marquês. O autor responde a essas e outras dúvidas levantadas sobre esses dramas em momentos diversos do enredo.

E as respostas foram bem surpreendentes. Não foi somente por meio do levantamento de dúvidas e do fornecimento de suas respostas em momentos posteriores que Gabriel García Marquez despertou o interesse do leitor a respeito dos dramas humanos. Um exemplo disso está na narração da história entre o marquês de Casalduero e Ygnácio, filho havido antes do nascimento de Síerva María.

Atualmente, a raiva é, aqui no Brasil, uma doença de notificação compulsória. Muito do que hoje se sabemos sobre o tratamento etiológico da doença foi descoberto no final do século XIX. Contudo, não houve grandes avanços desde então: a raiva humana possui um índice de letalidade de quase 100% e a sua assistência preventiva requer grandes gastos.

A aplicação das medidas preventivas bastou para que houvesse uma grande redução no número de casos da doença e hoje a maioria das mortes por ela causada ocorre em regiões do planeta em que tais medidas não são amplamente adotadas. Nem sempre foi assim. A raiva é conhecida por nós seres humanos há não menos que 4000 mil anos.

O primeiro registro escrito data de 1930 a.C na Mesopotâmia, aparecendo no Código de Eshnunna. Já em 400 a.C, ocorreu o seu primeiro registro na Grécia. Demócrito, filósofo pré-socrático, foi o seu autor. Na Grécia, a deusa Ártemis representava a curadora da raiva. Desde aquela época se sabia que a doença estava associada a mordidas de cães.

Daquele período até a descoberta da vacina antirrábica, a cauterização de feridas causadas por animais raivosos foi a principal forma de tratamento da doença. Acredita-se que a raiva seja uma doença cujo berço é a Europa. Na segunda metade do século XVIII, o aumento da população de cães aliada ao crescimento das aglomerações humanas nas cidades levou ao surgimento da raiva urbana.

Ao viajarem com os com os colonizadores europeus, os cachorros portadores do vírus da raiva o disseminaram para outros continentes. No momento em que o enredo de “Do Amor e Outros Demônios” se passa, a raiva era uma doença sem registros na América Latina antes da colonização europeia. Foi somente em 1810 que ocorreu o primeiro registro de raiva na Colômbia.

Não obstante, no momento em que essa história se passa a simples possibilidade de haver contraído a doença já causava enorme preocupação. Após a sua filha sofrer a mordida de um cachorro raivoso, o marquês de Casalduero passa a mostrar maior preocupação com Sierva María. Ele contrata o médico Abrenuncio para tentar trata-la e decide pôr a menina para viver no interior de seu lar, e não mais com os escravos.

Adorei a construção desse personagem no livro. Não falarei da relação do médico com a Igreja Católica para despertar a curiosidade do leitor em relação a esse ponto enquanto ele estiver lendo a obra. Nos dias que correm a raiva ainda é considerada uma doença letal. Imaginem essa realidade antes da descoberta da vacina da doença.

A despeito disso, não foram poucas as tentativas de curar Síerva María da raiva. Todas falharam. A Igreja Católica, que possuía enorme influência na Colômbia, toma ciência do caso.

A Colômbia era um país constituído por espanhóis, portugueses, indígenas, africanos e uma grande variedade de povos. A diversidade religiosa acompanhava essa pluralidade étnica. O respeito à devoção a outras religiões possuía como grande obstáculo o fato de a influência da Igreja Católica marcar presença em toda a sociedade, incluindo na educação. Essa influência não se restringia à esfera pública, também se estendendo à vida privada.

Em Cartagena das Índias, a influência clerical era histórica. Foi o papa Clemente VII que nomeou o primeiro bispo da cidade e a determinou sede episcopal. Não era possível, contudo, extinguir o culto a outras religiões naquele país.

A população negra possuía um tamanho não menos que duas vezes superior à população branca. Havia contestações, inclusive, a respeito da necessidade do tráfico de escravos. Devido à necessidade de mão-de-obra, ele não foi proibido.

No meio urbano, a população negra teve a oportunidade de se integrar à sociedade e a de conviver com os brancos. A presença jesuítica também permitiu a sua evangelização. Em contrapartida, se a religião cristã abria as portas para a população negra, ela também poderia puni-la. Nesse contexto, não era raro que praticantes de cultos africanos fossem levados aos tribunais do Santo Ofício sob a acusação de praticarem bruxaria.

Após a ciência da Igreja Católica quanto ao caso de Sierva María, a filha do marquês foi levada ao convento da Santa Clara para ser submetida ao exorcismo. Os sintomas que a castigavam foram associados à prática de cultos africanos antes de sofrer a mordida do cachorro raivoso. 

Sierva María, na realidade, não contraiu a raiva. Após chegar ao convento, a menina sofreu várias discriminações. Uma das partes da história que mais chamaram a minha atenção enquanto a sua vivência dentro do convento era narrada foi o da sua convivência com Martina, outra “possuída” pelo demônio. Martina foi mais uma personagem cuja história foi muito bem contada nessa obra.

Enquanto esteve no convento, Sierva María também sofreu tentativas de libertar o seu corpo da presença de demônios. Finalizo por aqui revelações a respeito do enredo para não emitir detalhes que comprometam o sentido do empreendimento de sua leitura.

A história contida no livro foi contada de uma forma extremamente elucidativa. Gabriel García Marquez soube intercalar passado e presente de forma a torna-los complementares na construção do enredo. Nele, eu não consegui detectar uma única ponta solta.

Todos os personagens foram bem construídos. O autor explicou muito bem a história de cada um deles antes de chegarem ao momento em que o enredo se passa. E ele fez questão de contar o que aconteceu com todos eles antes de finalizar a história.

Embora não possua um grande número de páginas, “Do amor e outros demônios” abordou uma profusão de temas. O genocídio indígena, o tráfico de escravos na América Hispânica, as relações de poder envolvidas nos processos de mestiçagem e a ascensão social de pessoas de origem não europeia foram alguns dos que mais atraíram a minha atenção.

Não tão distante do desfecho, vemos o desenvolvimento de um amor proibido no enredo. Por não ser aquele tipo de clichê agradável que nos instiga a ler um livro, é possível que muitos o julguem desnecessário. Acredito que não tenha sido essa a intenção do autor ao construí-lo. Vi nele a ilustração de uma das reflexões contidas na obra: a de que não há mal que a felicidade não cure.

“Do amor e outros demônios” me lembrou bastante de “O Exorcista”. Não tenho certeza se William Peter Blatty foi uma inspiração para Gabriel García Marquez. Contudo, achei os dois livros parecidos. Mas o que atualmente resenho não ficou menos original por isso. O enredo foi muito bem adaptado a outro contexto histórico e político e ele não ficou previsível ou menos original por uma possível inspiração em outra obra. 

Que livro incrível! Dos livros que li até o momento, esse foi o que mais me agradou neste ano. E todos os livros que li em 2021 foram incríveis. A história nele contida foi contada por meio de uma linguagem bem simples, assim como nos outros livros que já li do autor. Deles, “Do amor e outros demônios” só não me agradou tanto quanto “Cem anos de solidão”. Deixo aqui a indicação de leitura.


                                                                                                                             Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite

Do Amor e Outros Demônios (1994) | Ficha técnica:

Título original: Del amor y otros demônios

Autor: Gabriel García Marquez

Páginas: 192

Nota: 10/10



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