[Resenha] As boas mulheres da China - Xinran

 



Sinopse: Entre 1989 e 1997, a jornalista Xinran entrevistou mulheres de diferentes idades e condições sociais, a fim de compreender a condição feminina na China moderna. Seu programa de rádio, Palavras na brisa noturna, discutia questões sobre as quais poucos ousavam falar, como vida íntima, violência familiar, opressão e homossexualismo. De forma cautelosa e paciente, Xinran colheu inúmeros relatos de mulheres em que predomina a memória da humilhação e do abandono: estupros, casamentos forçados, desilusões amorosas, miséria e preconceito. São histórias como as de Hongxue, que descobriu o afeto ao ser acariciada não por mãos humanas, mas pelas patas de uma mosca; de Hua'er, violentada em nome da "reeducação" promovida pela Revolução Cultural; da catadora de lixo que impôs a si mesma um ostracismo voluntário para não envergonhar o filho, um político bem-sucedido; ou ainda a de uma menina que perdeu a razão em conseqüência de uma humilhação intensa. Quando Xinran começou suas entrevistas, o peso de tradições antigas e as décadas de totalitarismo político e repressão sexual tornavam muito difícil o acesso à intimidade da mulher chinesa. Desde 1949, a mídia chinesa funcionava como porta-voz do regime comunista. Rádio, televisão e jornais estatais eram a única fonte de informação, e a comunicação com pessoas no exterior era rara. Em 1983, o presidente Deng Xiao Ping iniciou um lento processo de abertura da China. Alguns jornalistas começaram a promover mudanças sutis na maneira como apresentavam as notícias. O programa apresentado por Xinran era um dos poucos espaços em que as pessoas podiam desabafar e falar de seus problemas pessoais. Nos relatos do livro, a autora possibilita a vozes antes silenciadas revelar provações, medos e uma capacidade de resistência que as permitiu se reerguer e sonhar em meio ao sofrimento extremo. Em condições extremas de vida, como a dos campos de reeducação da Revolução Cultural, afloram sentimentos de maternidade, compaixão e amor.


Opinião: “As boas mulheres da China”

Em 1949, ocorre a proclamação da República Popular da China. Esse marco para a História do país asiático foi fruto de um processo revolucionário no qual as forças comunistas representadas por Mao Tsé-tung derrotaram opositores nacionalistas e a influência de potências ocidentais sobre a China. E foi ele o responsável pela consolidação do poder nas mãos dos comunistas em território chinês.

Durante a década de 1950, Mao Tsé-Tung lançou o Grande Salto Adiante, um plano econômico que tinha como objetivo transformar a China de um país agrário a um país industrializado. O programa fracassou e acabou sendo considerado como um grande passo para trás. Foi ele o responsável pela Grande Fome Chinesa e pela morte de dezenas de milhões de chineses.  

Foi ele, também, o responsável pelo decréscimo na popularidade do presidente e pelo início de disputas internas por poder no próprio PCCh. Nesse contexto, em 1966 é dado o início da Revolução Cultural Chinesa, campanha maoísta que tencionava perseguir os opositores de Mao Tsé-tung, tanto no interior do PCCh quanto na sociedade civil. Em "As boas mulheres da China" vemos uma tentativa de entender a situação das mulheres do país levando em consideração a influência exercida por esses acontecimentos históricos. 

Na trama, a jornalista Xinran torna-se locutora do programa de rádio “Palavras da brisa noturna”. O programa conquista uma grande audiência e Xinran passa a receber um número crescente de cartas. Essas continham confissões de várias mulheres a respeito de situações abusivas pelas quais passaram. 

“As boas mulheres da China” é um romance biográfico. Escrito por meio de uma linguagem simples e leve, ele também se apoia em correspondências de cartas e matérias de jornais. Por não constituírem o principal meio pelo qual a história é narrada, não considero este livro como um romance epistolar.

Ele foi escrito nos anos 90 do século passado e é calcado em entrevistas feitas por Xinran entre 1989 e 1997. Gostei bastante da forma como a sua história foi contada. Em muitos capítulos, a autora constrói diversas reflexões antes de inseri-las no enredo. E o livro é repleto de reflexões. 

Em cada quatro pessoas do mundo, uma é chinesa. Uma superpopulação traria grandes problemas ao país, dificultando a oferta de serviços de educação e saúde por parte do governo aos chineses. Nesse contexto, entre 1979 e 1980 a República Popular da China decretou a política do filho único, a qual proibiu aos casais terem mais de um filho. Quanto à contenção do crescimento populacional, a política foi bem sucedida: especialistas estimam que a população chinesa que hoje possui pouco mais de 1,3 bilhões de habitantes possuiria um número de 1,7 bilhões.

A sua implementação requereu a violação de diversos direitos humanos. Devido ao envelhecimento populacional hoje vivenciado pela China e às consequências que ele acarreta às contas públicas do país, a política foi revogada em 2015. Em “As boas mulheres da China”, Xinran nos conta a história de uma mulher que sofreu de uma das consequências da política do filho único: a do impulso à compra de mulheres. 

Também encontramos nela um capítulo sobre um antiga realidade chinesa que há poucos anos veio a ser modificada em meio às consequências negativas da política do filho único. O referido capítulo nos conta sobre a possibilidade de os homens se casarem com várias mulheres.Esse direito existiu durante mais de 5000 anos e ter várias mulheres chegou a representar, inclusive, um símbolo de poder masculino. O ato foi amplamente difundido no território chinês durante 1912 a 1949, período em que a República da China esteve em vigor.

Em 2020, cinco anos após a revogação da lei do filho único, estimava-se que haveria um número de 30 milhões de homens solteiros. Para que as alterações demográficas promovidas pela política do PCCh não afetassem a economia chinesa de uma forma tão decisiva, foi permitido às mulheres se casar com mais de um homem contanto que tendo o objetivo de dar mais filhos à luz, uma grande reviravolta. 

O machismo chinês é fruto de uma construção histórica que dura por milhares de anos. Após a Revolução Comunista no país, os direitos femininos passaram a ter maior relevância para os seus dirigentes. Desde então, houve importantes conquistas para as mulheres chinesas.

O casamento obrigatório foi extinto e ocorreu uma evolução considerável no que se refere à igualdade às propriedades familiares e à petição do divórcio. Para que as mulheres pudessem dar maiores contribuições para a economia, o PCCh deu destaque ao movimento de emancipação feminina, de forma a exortar as mulheres a ingressarem no mercado e trabalho e a participarem ativamente da sociedade.

A Revolução Cultural também deu contribuições ao movimento feminista. Sabemos bem que Mao Tsé-tung foi um dirigente com atitudes condenáveis para qualquer defensor da democracia. Contudo, em se tratando de direitos femininos, muito do que ele deixou escrito se encontra em um nível de linguagem mais compreensível que a de outros autores socialistas, incluindo Marx, Engels e Lenin.

Os referidos autores já chegaram a serem usados por homens de esquerda como uma base intelectual para repreender movimentos e reivindicações feministas. Considerando a Revolução Cultural como um meio de consolidar e aprofundar as mudanças promovidas pela Revolução Chinesa, a propagação do ideário maoísta fez da mulher um sujeito revolucionário.

Ela foi a responsável por conceder às mulheres com pouca instrução a oportunidade de ter protagonismo na construção da nova sociedade chinesa. Isso não implica em uma inexistência de problemas enfrentados pela mulher chinesa. Lá, o feminismo só é considerado louvável enquanto defende as bandeiras do governo.

Foi somente em 2015 que ocorreu a aprovação de uma lei que proibisse a violência doméstica. Assim mesmo, ela não é específica para os casos de abuso sexual. Xinran deu grande visibilidade a esse problema em “As boas mulheres da China” ao mostrar várias cartas que recebia de suas ouvintes e ao narrar cenas de estupro e abuso.

Após narrar uma cena em que foi traída pelo seu marido e agredida fisicamente por ele em um capítulo da obra, Xinran deu visibilidade a mais um problema vivenciado pelas mulheres chinesas: após cogitar fazer uma petição de um divórcio, Xinran sentiu na pele o quão difícil ainda é para uma mulher se divorciar. Além de requerer gastos financeiros importantes, divórcios podem requerer anos para serem aprovados na China. 

As discussões contidas no livro são bem numerosas. A maioria delas teve a profundidade suficiente para que eu sequer cogitasse aprofundá-las nesta resenha. Dentre elas, algumas das que mais chamaram a minha atenção foram as das concepções do país a respeito da homossexualidade feminina, a diversidade de religiões nele já professadas, a relação do governo com a imprensa durante o período em que a República Chinesa vigorou e a influência nociva que as nações imperialistas exerceram na China.

O melhor de tudo é que Xinran articulou bem essas discussões ao enredo de seu romance biográfico. Essa articulação, ao ser associada a leveza na linguagem empregada pela autora, permite que esse livro seja lido por quem tem o entretenimento como principal objetivo ao lê-lo. O ritmo da narrativa não é eletrizante, mas os ganchos que a autora criou para estimular o seguimento da leitura por parte do leitor foram muito bem construídos.

Ela sabe como comover o leitor. Sabe, também, como criar cenas marcantes. A leitura da obra foi bastante agradável para mim. 

“As boas mulheres da China” é uma obra que nos permite compreender melhor a situação da mulher no país. Repleto de censura e tendo redes sociais como o Instagram, o Facebook e o Twitter banidas, é compreensível por que a obra tenha sido escrita em outro país, a Inglaterra. Sua leitura foi para mim uma experiência bastante agradável e um convite para conhecer melhor a realidade chinesa. Indico-a a todos os leitores. 

Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite


As boas mulheres da China (2002) | Ficha técnica:

Título original: Zhongguo de hao nü ren men

Autora: Xinran

Páginas: 251

Nota: 10/10





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