[Resenha] O Coração das Trevas - Joseph Conrad

  



Sinopse: Publicado em forma de livro em 1902, Coração das trevas é um dos grandes clássicos da literatura do século XX, conhecido também por ter servido de base para o filme Apocalypse now!, obra-prima de Francis Ford Coppola. Nessa nova tradução de Sergio Flaksman, a prosa conradiana aparece em todos os seus contornos e trejeitos, conforme o leitor acompanha a viagem do protagonista Marlowe pelo coração sombrio da selva africana. A missão de Marlowe é trazer de volta Kurtz, um mercador de marfim cujos métodos passam a desagradar a companhia mercante que o contratou. Dividido entre o fascínio e a repulsa por Kurtz, Marlowe aos poucos vai descobrindo a natureza desses métodos. A edição lançada diretamente no formato de bolso acompanha ainda o conto Um posto avançado e posfácio do renomado historiador Luiz Felipe Alencastro.

 

Opinião: “O Coração das Trevas”

O enredo do livro que será resenhado nessa postagem é ambientado na bacia do Congo durante a fase em que ela era propriedade do rei Leopoldo II da Bélgica. O monarca já chegou a ser condecorado como um redentor dos negros devido à propagação na Europa de sua filantropia na África. Contudo, houve um grande esforço em denunciar a farsa que ele representava e modificar a opinião pública a seu respeito.

Hoje, sabemos que Leopoldo derramou mais sangue e causou mais sofrimento na África que todas as tragédias naturais e todas as revoluções no continente. Naquele período, expedições “civilizatórias” condenaram povos inteiros ao sacrifício e à servidão. Joseph Conrad baseou a história contada em “Coração das Trevas” nesse contexto histórico.

A história possui mais de um narrador. Ela começa a ser contada por um narrador oculto, o qual nos fornece descrições a respeito do local que a ambienta e o compara com outras regiões desconhecidas pelo homem europeu que por ele foram desbravadas em busca de riquezas. Ele nos apresenta Marlow, o segundo narrador, e nos revela o objetivo da missão contada no livro, o de trazer Kurtz, comandante de um posto avançado no reino Belga, de volta ao seu país. A partir do momento em que Marlow se torna narrador, ele nos reconta essa história.

A princípio, o livro é de difícil leitura. Com termos raros, parágrafos longos e uma divisão de capítulos não tão bem demarcada, ela é cansativa no começo. Também há a menção a paisagens que não conhecemos, o que dificulta a construção de imagens em nossas mentes. A mudança de narrador também requer um maior grau de atenção.

Contudo, fazer uma pequena pesquisa sobre a geografia física do ambiente desse enredo e ter um dicionário à disposição propiciarão uma grande imersão na história. O empreendimento de uma leitura atenta também. Após a minha imersão no enredo, a leitura fluiu tão bem que pausá-la me causou grande desconforto.

O emprego de parágrafos extensos e a pequena explicitação das demarcações entre os capítulos, recursos que a princípio me foram desagradáveis, com o tempo passaram a transmitir a impressão de prolongada continuidade da história, dando-lhe grande dinamismo. O livro não tem uma abordagem politicamente correta, mas assim mesmo é difícil expressar em palavras o quanto ele me agradou.

Embora o enredo se passe no continente africano, não houve a mínima preocupação de Joseph Conrad em ilustrar o falar de seus habitantes. Ao contrário, ele os bestializou e fez analogias entre negros e animais. Também chegou a retratar negros como seres desprovidos de racionalidade.

No curso da história, Conrad trouxe a imagem do homem branco sempre associada a aspectos positivos. À época, diversas teorias buscavam legitimar a exploração do continente africano pelos europeus e a prática de ações discriminatórias contra negros.

A noção de civilização participa do norte da narrativa. Acreditava-se que a civilização era a expressão mais alta do progresso humano e que a ciência a ela levaria a humanidade. Naquele contexto, a prática do Imperialismo representava um mal necessário que levaria a civilização à selvageria do continente africano.

Essa visão produziu a crença de que aqueles povos deveriam ser subjugados pelo homem europeu, do qual vinha a ciência, a história e a erudição. E em “Coração das Trevas”, a concepção da África como o centro do mal do mundo, fruto daquela noção, foi exposta durante toda a narrativa. Vemos na obra o ato de levar luz às trevas sendo retratado com uma legitimação para o Imperialismo.

Esse era visto por Conrad como uma espécie de mal necessário, o qual negava a soberania dos povos sobre os territórios que habitavam mas os libertava de sua própria barbárie. Fundamentava a crença do autor a teoria de que a África estava em uma posição inferior, na linhagem evolutiva, à Europa, a qual era considerada o berço do evolucionismo.

O caráter imperialista da obra ainda é discutido por estudiosos. Embora acreditasse na necessidade do Imperialismo, Conrad não ignorou as suas mazelas. Ao longo da obra ele expôs a exploração dos africanos e as suas más condições de vida. Também vemos nela a tentativa de enxergar nos africanos uma espécie de “outro”. Além disso, conforme a história avança uma das vozes narrativas nos mostra que a barbárie não era uma exclusividade da África, mas também daqueles que se engajavam na exploração colonialista do continente.

A história é contada de um jeito a meu ver atípico. Ao lermos um livro, é habitual que ansiemos por explicações para questionamentos e pontas soltas deixadas pelo seu autor. Em “O Coração das Trevas”, a ausência do fornecimento de explicações por parte do autor constitui um elemento que tornam o enredo mais tentador. Não conheço muitos autores contemporâneos de Joseph Conrad nem quais foram as suas inspirações, mas o emprego desse recurso por um escritor menos habilidoso comprometeria a qualidade da história.

A mudança de vozes narrativas foi outro recurso bem empregado pelo autor. Ela me requereu uma leitura mais atenta, mas permitiu, a Conrad, expor diferentes pontos de vista sobre a história contada e, ao leitor, decifrar qual era o real objetivo do autor: criticar o Imperialismo a partir de teorias e pensamentos em vigor durante a época em que a obra foi escrita.

O livro não promoveu em mim o menor sentimento de empatia pelos personagens da história. Com eles não me identifiquei. Contudo, isso não acarretou nem um decréscimo no meu grau de apreciação da obra.

“Coração das Trevas” contém o tipo de história que irá marcar a sua vida sem precisar reunir diversos elementos de outros livros que já o fizeram. Ele é curto, mas requer um pouco mais de esforço para ser lido. Isso não significa que a obra não tenha fluidez: após a minha imersão no enredo, não senti o menor desejo de pausar a leitura. O indico ao leitor com interesse em ler histórias cruas.

                                                                                      Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite

O Coração das Trevas | Ficha técnica

Título original: Heart of Darkness

Editora: L&PM

Páginas: 152

Nota: 10/10



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