[Resenha] O Mulato - Aluísio Azevedo

 



Sinopse: o jovem Raimundo retorna à sua cidade natal, São Luís, após se formar em Direito em Lisboa. Chegando no Maranhão, se instala na casa do tio Manuel, que cuidou dele na infância após ficar órfão. Ele visita a propriedade de seu pai e lá descobre alguns segredos ligados ao padre Diogo e ao destino fatídico de seus pais. Em meio as histórias do passado e buscando se estabelecer no Brasil, o jovem acaba se apaixonando pela prima, Ana Rosa, que o corresponde. Mas esse amor é proibido para a rígida sociedade escravista, pois Raimundo é filho de uma escrava, sua prima é de uma família conservadora e preconceituosa, que a prometeu a outro homem. As descobertas do advogado, preocupam o padre, que observando o desenrolar amoroso resolve interceder.

Opinião: "O Mulato"

Entre fins do século XVII e início do século XIX, o Maranhão e, em especial, a sua capital São Luís vivenciaram um intenso crescimento econômico, sobretudo após a intensificação da cultura algodoeira. À época, São Luís era a quarta capital mais rica do país, atrás unicamente do Rio de Janeiro, de Salvador e de Recife. Em paralelo, no século XIX diversas teorias tornam a ganhar corpo no ocidente. Naquele período, o mundo acadêmico passa a estimar a cientificidade e a se afastar de postulados teológicos e metafísicos.

No cenário descrito, o Brasil ainda era constituído por instituições como a monarquia e a escravidão. Elas passaram a ser consideradas como empecilhos para que o país crescesse. Ideias positivistas, evolucionistas e darwinistas impulsionavam ideias republicanas e abolicionistas. Nesse contexto, Aluísio Azevedo concebe “O Mulato”, obra que inaugura o Naturalismo no Brasil. Além da escravidão e da monarquia, na referida obra a influência excessiva do clero e a sociedade retrógrada de São Luís foram alvos de críticas pelo autor.

Na capital maranhense, Manuel Pedro da Silva, conhecido como Manuel Pescada, era um trabalhador português de 50 anos de idade. Com sua ex-mulher Mariana Alcântara, tem a sua filha Ana Rosa. Mariana defendia que o casamento deveria levar em consideração os sentimentos humanos, enquanto Manuel Pescada a eles era alheio.

Antes de se casar com Manuel Pescada, Mariana Alcântara se apaixonou por José Cândido de Moraes e Silva, também conhecido como Farol. Com ele também tentou se casar, em vão. Antes de falecer, Mariana segredou a Ana Rosa sobre os seus sentimentos em relação a Farol.

Após a morte de sua mãe, Ana Rosa cresceu em meio a desvelos insuficientes de seu pai e ao mau gênio de sua avó. Ana Rosa era bonita e seu corpo exibia boa forma para os padrões da época. Durante a sua adolescência, caprichos românticos lhe ocorreram, influenciada pelos livros que lia. Assim como sua mãe, defendia o casamento por amor.

 Ana Rosa tornou a alimentar um amor não correspondido, o que chegou a afetar a sua saúde, trazendo preocupações a Manuel Pescada. Em paralelo, Raimundo, o protagonista da história, chega a São Luís após concluir estudos no exterior. Muito se especulava sobre Raimundo. Ele era filho de uma escrava com um português que enriqueceu com o tráfico de escravos. No curso do enredo, Raimundo e Ana Rosa se apaixonam. Manuel Pescada não admite que sua filha se envolva com Raimundo em virtude de sua mãe ser uma escrava. Em decorrência disso, Ana Rosa e Raimundo passam a viver um amor proibido. 

 “O Mulato” pode haver sido uma leitura obrigatória durante a sua vida escolar ou uma obra presente em algum edital de um vestibular tradicional que você já prestou. Tive a sorte de nem um desses ser o meu caso. A leitura obrigatória é um enfado e, para mim, uma das maiores inimigas da consolidação do gosto por ler.

No Brasil, isso representa um grave problema. Em nosso país, a publicação de livros foi proibida durante todo o período colonial, havendo sido regularizada somente em 1808 com a chegada da família real portuguesa ao Brasil para escapar de uma invasão francesa em Portugal. Nos dias que correm, o hábito de leitura ainda é tido por muitos como uma atividade de doutores e cardeais e o nosso país continua lendo pouco.

“O Mulato” para mim foi uma grande leitura. A escrita do autor é extremamente agradável e o ritmo da história é adequado ao seu enredo. Esse é muito bem desenvolvido. Tudo é bem explicado em um nível satisfatório de detalhes.

Os personagens da história não deixam a desejar e as cenas concebidas pelo autor são bem divertidas. Alguns romances narrados no livro são clichês para a época, mas  alguns não deixam de agradar. A história é muito bem contada, mas o seu maior trunfo, a meu ver, são as importantes críticas sociais que o autor faz em seu curso. 

Há discussões a respeito de qual seja o principal tema de “O Mulato”. Para alguns, é a crítica anticlerical. Para outros, é a crítica à sociedade maranhense. Para muitos, é a crítica à escravidão. Independente de qual seja o principal tema, todas essas críticas são importantes para o livro aqui resenhado.

No final do século XIX, São Luís possuía uma sociedade que vivia de aparências e de sombras de sua fase áurea que estavam desaparecendo. À época da concepção de “O Mulato”, o Maranhão ainda era considerado uma província atrasada cujas ideais que inspiravam o Naturalismo tardavam a nela adentrar. Aluísio Azevedo fez críticas à província, sobretudo em relação à postura de seus clérigos e a sua resistência ao movimento abolicionista.

Em São Luís, o público leitor de Aluísio Azevedo não era vasto. No final do século XIX, somente 15% da população brasileira sabia ler. O público do autor estava na população com melhores condições econômicas, a qual conseguia ter acesso aos livros vendidos nas livrarias. A despeito do número elevado número de analfabetos no Maranhão, eles puderam entrar em contato com a obra de Aluísio Azevedo por meio de reuniões caseiras nas quais se lia o romance em voz alta para aqueles que não sabiam ler.

A primeira milha de exemplares de “O Mulato” se esgotou rapidamente em São Luís. O livro contrariou as expectativas do público, tendo recebido críticas positivas e negativas desde que saiu. Aluísio Azevedo criticou de forma mordaz a sociedade maranhense, a qual tomou por beata, hipócrita e pobre.

Pessoas que partilhavam características em comum com personagens que Aluísio criou com vistas a fazer críticas sociais viam as suas almas atingidas profundamente pelo autor. Isso explica parte das críticas que ele sofreu do público. Esse último não foi o único a ser criticado: em “O Mulato” também vemos ferozes críticas anticlericais, econômicas e políticas.

Pelas críticas religiosas, “O Mulato” chegou a inspirar conflitos judiciais entre intelectuais e clérigos. Pelas críticas econômicas e políticas, Aluísio Azevedo foi rechaçado por políticos maranhenses, o que podemos constatar a partir do trecho de um artigo veiculado no prefácio da segunda edição da obra:

“Eis aí um romance realista, o primeiro pepino que brota no Brasil.

 É muita audácia, ou muita ignorância, ou as duas coisas ao mesmo tempo! É contar demais com a ignorância dos leitores, com a benevolência da política nacional, e julgar os outros por si.

Permita o jovem zote, autor de O Mulato, que me admire ainda uma vez. A compreensão sobre o realismo é de eternas luminárias! Melhor seria fechar os livros, ir plantar batatas e jurar com antigo rifão:

 

Abraçou o asno com a amendoeira

E acharam-se parentes” (AZEVEDO, 1881, p. 15)

Outra importante crítica feita por Aluísio Azevedo foi à escravidão e ao racismo por ela legado. Foi somente em meados do século XIX que a escravidão passou a ocupar espaço relativo na literatura brasileira, fato importante para tornar visíveis as questões do ser negro/escravizado. Em 1871, dez anos antes da publicação de “O Mulato”, ocorreu a promulgação da “Lei do Ventre Livre”, a qual despertou muitas esperanças, mas não resolveu por completo o problema da escravidão.

À época, o movimento pró-escravagista tinha o apoio de grupos dominantes do campo e das cidades. No terreno eleitoral, os abolicionistas não conseguiam convencer os setores da sociedade relacionados à manutenção da escravidão. O Maranhão não era uma exceção no território nacional.

Ao contrário, o antagonismo ao movimento abolicionista na província era mais intenso que o da maioria das províncias brasileiras. Lá, o comércio de escravos possuía proporções similares ao do Sul do país. Nos jornais maranhenses, Aluísio Azevedo e alguns de seus companheiros combatiam com veemência as ideias pró-escravagistas.

Isso ele também fez em “O Mulato”, obra com forte caráter de denúncia. Mais do que criticar a escravidão enquanto instituição, Aluísio Azevedo também combateu o racismo que restringia o acolhimento de descendentes de escravos por outras famílias. Sem qualquer fundamento científico, o racismo se funda em uma diferença na cor de pele.

Por meio de seu personagem Raimundo, Aluísio Azevedo caricaturou a vivência do racismo naquele. Raimundo era um homem letrado, afortunado e viajado mas malvisto em virtude de seu nascimento ser fruto de uma união entre um homem branco e uma mulher negra escravizada. O trágico destino de Raimundo disso decorreu.

Apesar das críticas antirracistas contidas na obra, em “O Mulato” também encontramos aspectos racistas. Isso é explicado porque, à época, diversas teorias pseudocientíficas borbulhavam no mundo. Uma delas foi o determinismo, na obra possuindo um viés racial, fruto de interpretações do “darwinismo social” ou “teoria das raças”.  O determinismo foi um dos princípios que orientou a concepção de “O Mulato”. O destino de Raimundo foi fortemente influenciado por ele.

Com relação aos escravos, Aluísio Azevedo os ilustrou sob dois pontos de vista: o dele e o dos escravocratas. Os escravocratas viam na escravidão um mal necessário. Para eles, os escravos constituíam um exemplo deplorável para as famílias.

No romance, os escravos aparecem com uma densidade psicológica e sociológica importante. Nele, o autor expôs diversos defeitos da escravidão, denunciando o escândalo que ela representava para os que se diziam cristãos. Para Aluísio Azevedo, princípios humanitários deveriam presidir a organização de qualquer sociedade. Isso não significa, contudo, que o autor tivesse grande apreço pelos escravos.

Críticas anticlericais são as últimas, mas não menos importantes, que o autor fez em “O Mulato” a serem analisadas nesta resenha. O anticlericalismo não era novidade no período da publicação da obra. Ele já era notado desde o período colonial, quando um sentimento antijesuítico surgiu na sociedade. Aquele se fundava na insatisfação quanto às posses e à riqueza da igreja.

O sentimento anticlerical perdurou durante todo o período colonial, marcou presença no império e também continuou a se manifestar após a proclamação da República. Na província maranhense, a imprensa foi o principal veículo de críticas anticlericais. Aluísio Azevedo tinha participação em jornais maranhenses, chegando a neles fazer críticas à igreja. Em certa ocasião, chegou a sofrer uma acusação de que tinha pacto com o demônio.

No livro, Aluísio Azevedo criticou o excesso de confiança que a monarquia brasileira depositava no clero. O Positivismo, que influenciou fortemente o Naturalismo, acreditava que o clero era arcaico e a sua supressão era necessária para a organização da sociedade, a qual ele julgava que deveria se basear na observação e na ação científicas.

Influenciado pelos ideais positivistas, em “O Mulato” Aluísio Azevedo buscou mostrar os perigos que a sociedade corria ao manter em seu seio um clero imbuído de hipocrisia. Por meio da construção de Raimundo, propôs a instauração da República. Na obra, o autor expôs a desfaçatez da igreja em refugiar-se em Deus quando via a sua integridade moral questionada.

“O Mulato” é uma obra do Naturalismo. Em solo brasileiro, ela inaugurou a escola. Contudo, a história contada por Aluísio Azevedo não carrega todas as características do Naturalismo, possuindo alguns aspectos em comum com obras do Romantismo.

O Naturalismo se opõe às idealizações românticas do Romantismo. Em “O Mulato”, as encontramos. Não podemos considerar a obra como totalmente romântica ou naturalista. É possível enquadra-la, contudo, como um romance híbrido e de transição entre duas estéticas, no caso a romântica e a naturalista-realista.

Alguns aspectos de “O Mulato” chegaram a me incomodar. Histórias sobre amores impossíveis eram bem comuns na época de seu lançamento. Vemos semelhanças grandes demais entre a obra e “Romeu e Julieta” de Shakespeare, embora adaptada à realidade brasileira e maranhense. Não deixa de incomodar.

Parte considerável dos acontecimentos do livro são previsíveis e até clichês. Noto grande influência de Eça de Queiroz em “O Mulato”. Não me oponho a um autor se inspirar em outro, mas quem é habituado a ler livros de Eça de Queiroz poderá julgar o enredo de “O Mulato” previsível e pouco original.

Não obstante, importantes diferenças narrativas entre Eça de Queiroz e Aluísio Azevedo fazem de “O Mulato” uma leitura bem marcante apesar da influência do escritor português torna-la previsível. A principal delas, a meu ver, é a de que Aluísio Azevedo é menos prolixo e dosa melhor o ritmo.

É uma narrativa demorada, mas agradável. Se ela fosse um pouco mais lenta, estragaria. Se fosse mais rápida, também. É o tipo de livro cuja narrativa faz falta e com que outros não consigam mais nos satisfazer. 

Você já ouviu falarem que nota não necessariamente mede conhecimento? Neste blog, muitas notas que atribuo aos livros não conseguem quantificar a sua verdadeira qualidade. Este é o caso de “O Mulato”. Por trazer muitos clichês e em diversos momentos me soar previsível e pouco original, atribuo a nota ao romance. Contudo, isso não altera o fato de que ele foi uma das minhas leituras mais marcantes do ano e o de que possui uma importância histórica para o Brasil. Ele apresenta uma história muito bem escrita e contada e é, para mim, uma grande indicação de leitura.


                                                                                            Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite



O Mulato (1881) | Ficha técnica

Título Original: O Mulato

Editora: Martin Claret

Páginas: 277

Nota: 8/10


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