[Resenha] Mar Morto - Jorge Amado

 


Sinopse: Nenhum outro livro sintetizou tão bem quanto Mar morto o mundo pulsante do cais de Salvador, com a rica mitologia em torno de Iemanjá, a rainha do mar. Personagens como o jovem mestre de saveiro Guma parecem prisioneiros de um destino traçado há muitas gerações: o dos homens que saem para o mar e que um dia serão levados por Iemanjá, deixando mulher e filhos a esperar, resignados. Mas nesse mundo aparentemente parado no tempo há forças transformadoras em gestação. O médico Rodrigo e a professora Dulce, não por acaso dois forasteiros, procuram despertar a consciência da gente do cais contra o marasmo e a opressão. Esse contraste entre o tempo do mito e o da história move Mar morto, envolvendo-nos desde a primeira página na escrita calorosa de Jorge Amado.


Opinião: "Mar Morto"

Na década de 1930, Jorge Amado mudou-se para o Rio de Janeiro e participou ativamente de um debate intelectual que o levou ao comunismo. Filiado ao partido comunista, vemos o ideário do partido influenciar alguns dos primeiros romances do autor. O partido comunista acreditava que os intelectuais deveriam produzir ficção como uma denúncia para o sofrimento da população.

Em “Mar Morto”, vemos uma narrativa distante daquela influência. A história contada no livro se passa em Salvador, capital da Bahia. Ela irá retratar a vida dos marinheiros de seu cais. O seu destino era fortemente influenciado, se não determinado, pela deusa Iemanjá.

Guma, grande herói do livro, à época ainda era jovem. Aprendeu sobre as leis do mar com o seu tio Francisco. No decurso do enredo, Guma desenvolve um romance com Lívia, o qual retém boa parte do foco da narrativa.

Esse se desloca entre os personagens e o meio que os circunda. Isso requer do leitor um grau elevado de atenção para que ele não se perca quanto ao enredo. É o tipo de livro cuja concentração empreendida vale a pena. O romance entre Guma e Lívia, além de não ser a única coisa a ser contada na história, também está longe de conter todos os elementos que a tornam importante.

A história possui outros heróis, embora Guma seja o principal. Jorge Amado despende tempo na construção de seus personagens antes de introduzi-los no curso do enredo. E ele possui muitos personagens. Muitos autores inserem dezenas de personagens sem construí-los ou mostrar o motivo de sua aparição na história, o que me incomoda bastante. Por isso aprecio tanto a construção dos personagens em “Mar Morto”.

A influência do espaço sobre o enredo é outro trunfo da história. E explica o motivo de algumas descrições de ambientes por parte do autor não incomodarem. Em “Mar Morto”, o espaço é mais do que uma simples paisagem. A orla e o mar de Salvador constituem a base no qual os dramas humanos se localizam.

A vida no cais de Salvador representava uma luta pela sobrevivência. As mulheres se casavam com marinheiros, estando sujeitas a grandes dificuldades quando eles forem defrontados por Iemanjá. A história construída por Jorge Amado em “Mar Morto” é imersa nesse contexto.

Ela possui muitos elementos em comum com a Literatura Regionalista, que estava em voga na década de 30. Dentro do espaço geográfico, o romance insere as relações sociais entre os personagens, marcada por uma intensa solidariedade. As relações comerciais e os valores sociais também são retratados.

O espaço geográfico da capital baiana abriga diversos elementos da narrativa de Jorge Amado. Porém, o mais importante talvez seja a religião. Ela, assim como em outras obras do autor, aparece como algo indissociável da realidade de seus personagens.

O livro possui o sincretismo como um importante elemento. Afinal, a Bahia, terra do escritor, também é por ele marcada. Homens e mulheres em alguns momentos se comportam como deuses. O inverso também ocorre.

Vemos na obra homens partirem para o mar e deixarem as suas famílias à mercê dos desejos de Iemanjá. O determinismo é uma característica comum a muitas obras da Literatura regionalista. Porém, em “Mar Morto” vemos Guma protagonizar a salvação de um navio condenado à morte pela deusa Iemanjá.

Grandioso herói é Guma. Podemos ver nele a personificação da busca do homem pela união entre o natural e o sobrenatural como um elemento estruturador da sociedade. Personagens femininos também tiveram uma participação decisiva na história.

Pouco tempo antes de Jorge Amado se tornar escritor, as mulheres do Brasil tornaram a clamar por direitos. Em seus romances, Jorge Amado buscou dar voz e visibilidade às mulheres. No caso de “Mar Morto”, o autor mostra em Lívia uma forma de resistência ao destino das mulheres viúvas: o de trabalharem nas fábricas ou o de se prostituir.

Na obra, Jorge Amado também problematizou a violência contra a mulher. Além da religiosidade, o livro também traz como temáticas a luta diária dos trabalhadores do cais, a sobrevivência, a miséria e a condição das mulheres viúvas perante a vontade da deusa Iemanjá. 

A Literatura regionalista mostrava como o espaço físico moldava a vida dos homens. Outra característica marcante de seus autores é o esforço em ilustrar a fala dos habitantes de um local e diferenciá-la da dos escritores. Ambos os aspectos podem ser notados em “Mar Morto”, mas Jorge Amado ilustrou o ser humano como um copartícipe de seu destino. Além disso, apesar de trazer termos que remetem à religiosidade do litoral baiano, o leitor não-baiano não tem como necessidade a presença de um glossário a respeito.

A carnavalização é um fenômeno que influencia diversas obras do autor. O termo foi cunhado pelo linguista russo Mikhail Bakhtin e alude a transposição das características carnavalescas para a Literatura. Ele é marcado por uma quebra do distanciamento entre os gêneros literários e por uma aproximação de leitor, personagem e autor.

No caso de “Mar Morto”, vemos o encontro de três culturas: a africana, a europeia e a ameríndia. Também podemos verificar a ocorrência do fenômeno nas festas, nas quais é ilustrado o convívio da religião católica com o culto à Iemanjá sem que haja prejuízo à fé de qualquer uma das partes. 

“Mar Morto” é um livro excelente! Indico fortemente. Ele possui uma história incrível contada a partir de uma escrita que fará falta após a conclusão de sua leitura. Talvez a história pareça tediosa nos primeiros capítulos, mas dando uma chance ao livro ao final da história se verá que a leitura valeu a pena. Quem não gosta das críticas de viés político contidas em outros livros de Jorge Amado terá aqui uma oportunidade de apreciar o autor.

                                                                        Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite



Mar Morto (1936) | Ficha técnica

Título original: Mar Morto

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 271

Nota: 10/10



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