[Resenha] Filhos de Sangue e Osso - Tomi Adeyemi

 




Sinopse: Zélie Adebola se lembra de quando o solo de Orïsha vibrava com a magia. Queimadores geravam chamas. Mareadores formavam ondas, e a mãe de Zélie, ceifadora, invocava almas.

Mas tudo mudou quando a magia desapareceu. Por ordens de um rei cruel, os maji viraram alvo e foram mortos, deixando Zélie sem a mãe e as pessoas sem esperança.

Agora Zélie tem uma chance de trazer a magia de volta e atacar a monarquia. Com a ajuda de uma princesa fugitiva, Zélie deve despistar e se livrar do príncipe, que está determinado a erradicar a magia de uma vez por todas.

O perigo espreita em Orïsha, onde leopanários-das-neves rondam e espíritos vingativos aguardam nas águas. Apesar disso, a maior ameaça para Zélie pode ser ela mesma, enquanto se esforça para controlar seus poderes — e seu coração.

Filhos de sangue e osso é o primeiro livro da trilogia de fantasia baseada na cultura iorubá O legado de Orïsha e está sendo adaptado para o cinema.


Opinião: "Filhos de Sangue e Osso"

Na década de 1950, um movimento que fundia elementos espaciais e futuristas à cultura africana veio à luz. A música foi um dos principais veículos nos quais ele se manifestou. Em 1993, Mark Dery cunha o termo afrofuturismo, que passou a designar esse movimento em todas as produções artísticas. Atualmente, na Literatura o afrofuturismo representa um termo que alude a produções de ficção especulativa com representatividade negra tanto em sua autoria quanto em seus personagens.

A escravidão e o colonialismo foram extintos, mas a sombra de seu passado ainda repercute sobre a população negra. Nesse contexto, o afrofuturismo representa mais do que uma tentativa de inserir personagens negros em narrativas que transitam entre a ficção científica e a ficção especulativa. É nele em que são retratados os eventos históricos relacionados ao racismo e os dilemas que a população negra enfrenta. Nesse contexto, Tomi Adeyemi lança em 2018 “Filhos de Sangue e Osso”, obra que carrega diversos elementos do afrofuturismo e possui elevado potencial de disseminar as suas críticas sociais a um público cada vez maior, o que pode atestado pelo seu êxito comercial.

O enredo é contato a partir do ponto de vista de três personagens. Zélie é uma aprendiz da magia do bastão, cujo uso é destinado a proteger as pessoas que não conseguem se defender por conta própria. Adolescente, ainda não é cônscia das responsabilidades ligadas ao domínio dessa magia. É orientada por Mama Agba tanto com relação ao domínio da magia quanto aos cuidados a serem tomados quanto ao seu manejo.

À época, o povo de Zélie havia sido destituído da magia e forçado a pagar quantidades crescentes de impostos. Quando criança, Zélie assistiu à morte de sua própria mãe. Ela tinha orgulho de seu povo, e aspirava a restaurar a magia e o prestígio do qual fora destituído.

Amari pertence a família real. Nesta, impera a crença de que a magia traria a ruína do reino e, por isso, deveria ser destruída. Amari não concordava com essa visão. Logo a sua família descobre que divinais se tornaram majis, detendo poder sobre a magia, ainda que esta fosse fraca. Tal magia foi despertada por artefatos de poder.

Majis foram mortos e houve a tentativa de se destruir esses artefatos. A tentativa fracassou, trazendo fúria ao rei, pai de Amari. Ela tinha uma amiga, Binta, a qual foi morta pelo seu pai. Isso causou grande remorso em Amari, que não se contentou com o ocorrido.

Em meio a essas circunstâncias, Amari mostra sua dissidência quanto à magia a sua família, que não a tolerou. Inan, seu irmão e futuro rei de Orishä, foi encarregado por seu pai a matá-la, mas não conseguiu cometer o assassinato, permitindo a Amari se tornar uma fugitiva.

Com o objetivo de restaurar a magia, Amari tem o seu destino cruzado com o de Zélie, que tinha o mesmo propósito. Amari não conquistou a confiança de Zélie assim que a conheceu. Contudo, em meio a uma aventura, elas conseguem fugir de uma captura e partir rumo ao encontro dos artefatos de poder para restaurar a magia.

Inan, como futuro rei, deveria saber quando deveria ser generoso e quando ser insensível para evitar um desequilíbrio de poder político em Orishä. Diferente de seu pai, possuía um lado humano e não estava disposto a fazer tudo pelo poder. Assim como Amari, não concordava totalmente com o funcionamento da sociedade construída por Tomi Adeyemi. Contudo, seus deveres como rei o impeliram a se tornar antagonista dos anseios de Zélie e Amari.

Ao expor o ponto de vista de três personagens, Tomi Adeyemi possibilita ao leitor acompanhar a história sob a perspectiva de cada um deles. Cada ponto de vista é narrado em primeira pessoa, permitindo ao leitor conhecer a visão de mundo dos personagens. Isso propiciou à autora ilustrar os conflitos de interesse entre eles de forma honesta e sob uma perspectiva que transcende o maniqueísmo.

Os capítulo narrados por personagens distintos são interdependentes do ponto de vista semântico. Acontecimentos vivenciados por um personagem são melhor explicados em capítulos de outros personagens. Repercussões de determinadas atitudes dos personagens sobre o enredo também são ilustradas no momento em que os demais narram-no sob sua perspectiva.

A história é contada de forma extremamente ágil. Tomi Adeyemi sabe dosar o ritmo do enredo. Construindo personagens, a ambientação e a mitologia da história, ela é pausada sem ser cansativa. Para criar cenas de ação, se vale de diversos recursos para estabelecer ganchos entre os capítulos e criar uma atmosfera de tensão.

Quem procura em um livro boas cenas de ação encontrará em “Filhos de Sangue e Osso” um grande deleite. As no livro contidas são extremamente dinâmicas e bem construídas.

As motivações dos personagens não são expostas por completo a partir do momento em que eles aparecem na história. Elas vão sendo melhor explicadas conforme o enredo flui e dúvidas a respeito alimentam a curiosidade do leitor quanto ao universo fantástico concebido pela autora.

A escrita de Tomi Adeyemi na história é elegante sem ser ininteligível. Comove o leitor sem soar forçada. E é, contudo, apenas um dos atrativos que encontramos no livro.

Em livros de fantasia e ficção científica, é comum encontrar elfos, bruxos e alienígenas sendo utilizados como instrumentos para criticar preconceitos humanos. Em "Filhos de Sangue e Osso", Tomi Adeyemi o fez utilizando elementos inspirados na mitologia iorubá, de origem africana. A autora também fez críticas sociais e políticas sobre problemas enfrentados pela própria população negra, em contraste com outros livros da ficção especulativa que trazem críticas sociais sob uma perspectiva eurocêntrica.

Em Orishä, há negros em diferentes tonalidades de pele, umas mais claras, outras mais escuras. Lá, havia a crença de que o poder estava vinculado claridade da pele. No nosso país, o conceito biológico de raça inspirado em diversas teorias chegou durante a virada do século XIX para o século XX. A transição do sociedade escravocrata para o sistema econômico capitalista baseado no trabalho assalariado estava em operação.

Naquele período, a pluralidade de povos que participavam da formação da sociedade brasileira fazia da condenação da miscigenação algo inviável. Em um contexto em que a crença da superioridade da raça branca estava em vigor, a miscigenação passou a ser vista como um mecanismo de redenção da sociedade brasileira. Aqui, o branqueamento da população também justificou a adoção de uma política de Estado que visava importar mão-de-obra de origem europeia, o que aceleraria o processo de embranquecimento da população.

Atualmente, teorias pseudocientíficas que apoiaram as políticas de branqueamento no Brasil são condenadas, como é o caso do Darwinismo social. Todavia, tanto aquelas políticas quanto a organização social do período escravocrata do país deixaram como herança um sólido alicerce do racismo na sociedade. E ele repercute sobre a forma como um afrodescendente se enxerga diante do mundo.

Em "Filhos de Sangue e Osso", Adeyemi trouxe em Zélie a personificação da luta contra o apagamento da identidade negra. Outra desigualdade que resulta em preconceitos e discriminações é a de viés econômico e social. Adeyemi ilustrou a opressão vivenciada pelos majis, a qual possui como uma de suas manifestações a repressão por forças policiais.

Na história, os majis eram forçados a fornecer elevados níveis de impostos, realidade apresentada ao leitor já nos primeiros capítulos do livro. Conforme a narrativa avança, eles são ilustrados como o motivo da ruína de grandes impérios. Além disso, eles são sujeitos a uma truculência policial.

Também enxergamos nisso diversos problemas que castigam a sociedade. Nos Estados Unidos, a população afrodescendente é a principal vítima da truculência policial. Aqui no Brasil, não é diferente, e o culto a religiões de matriz africana é um alvo constante de crimes de intolerância. Também é preciso mencionar que no nosso país os descendentes de escravos já foram vistos como uma antítese do progresso nacional.

Outra crítica contida no livro que chamou minha atenção diz respeito à violência de gênero. Em Orishä, mulheres tinham o controle sobre o próprio corpo dependente da vontade de outro homem. Além de possuírem uma menor fruição de liberdades individuais, mulheres eram alvo de violência em Orishä por simplesmente serem mulheres.

Apesar de avanços, como a instituição da lei Maria da Penha há mais de uma década, a qual visava mitigar os índices de violência doméstica contra a mulher, dados fornecidos pelo próprio Ministério da Saúde revelam que a cada 4 minutos uma mulher é agredida por um homem. Também é no nosso país em que uma mulher é estuprada a cada 8 minutos, conforme expressam os dados da 14º Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

A violência contra a mulher não se restringe à física. Quando ela é psicológica, acaba arruinando sonhos, prejudicando a eficiência no trabalho e causando traumas não resolvidos até o final da vida. A violência psicológica pode requerer maiores esforços para ser comprovada, mas não deixa de ser danosa e de precisar ser combatida. 

Entre os séculos XVI e XVIII, médicos eram influenciados pela crença aristotélica de que o útero feminino nada mais era que um receptáculo para a alma inflada pelo sêmen masculino. À época, os médicos tinham pouco conhecimento sobre o corpo feminino, o qual se restringia à capacidade reprodutiva da mulher. Acreditava-se que o corpo feminino predispunha o homem a tentações diabólicas e que doenças que o acometiam eram fruto de castigos divinos.

No livro aqui resenhado, Tomi Adeyemi trouxe elementos da cultura nigeriana e os reinventou. Não é a primeira vez que isso ocorre: no afrofuturismo diversos autores já o fizeram. Contudo, o êxito comercial do primeiro volume de "O Legado de Orishä" dará à população uma maior evidência aos debates veiculados em obras do afrofuturismo. Há outras características da história que não são essencialmente inéditas, mas que não chegaram a me incomodar.

A personalidade de Zélie em muito se assemelha com a de Elizabeth Bennet, de "Orgulho e Preconceito". Zélie mostra ter orgulho da classe social a que pertence, é solidária aos seus anseios e se incomoda com os problemas que a defrontam. Em um momento da história, é narrado uma espécie de jogo em espetáculo que remonta aos jogos vorazes construídos por Suzanne Collins. A busca pelos artefatos do poder empreendida por Zélie e Amari para restaurar a magia também lembra a busca por Orcruxes nos últimos dois livros de Harry Potter. Nenhum desses aspectos foram muito centrais para a história e a autora conseguiu impedir que eles fossem apresentados sem originalidade ou de uma forma que incomodassem o leitor.

Não foi esse o caso do romance que se desenvolveu pouco antes do final do livro. É bem verdade que ele operou como um gancho para o clímax da história e para a estruturação do segundo volume da trilogia. Ele foi apresentado em um momento no qual a autora dividiu os focos narrativos entre acontecimentos narrados no presente e no futuro. Ela não explicou a gênese do romance entre os personagens, acredito eu que para melhor fazê-lo no próximo livro. 

Todavia, ele se pareceu tanto com uma mistura de Romeu e Julieta com Marco Antônio e Cleópatra que chegou a ser clichê e a me incomodar. Por não haver muitas explicações a respeito no primeiro volume de "O Legado de Orishä" e elas previsivelmente ocorrem no próximo volume, esse desagrado não influenciará a nota que atribuirei ao livro. 

Apesar de não ser um ponto forte da história, a autora conseguiu fazer dele uma peça importante para o planejamento do próximo volume da trilogia. Em "Filhos de Sangue e Osso", o ritmo da história é um dos seus maiores trunfos. E ele teve uma participação muito importante dos ganchos que a autora criou entre os capítulos. 

O universo de Orishä foi muito bem apresentado ao leitor. A autora soube deixar pontas soltas na história que tornarão propícia a expansão daquele universo ao leitor nos próximos volumes da trilogia. Estou bem ansioso. 

Esse foi um dos melhores livros de fantasia que já li na vida. A série foi a última que despertou o meu interesse desde que concluí a leitura de "A Torre Negra" de Stephen King. A narrativa da autora é muito engenhosa e certamente conquistará milhões de fãs com tempo, o que já ocorre. O livro traz discussões importantes à população negra, mas foi escrito para agradar a qualquer leitor de fantasia. Pessoas que não apreciam tanto o gênero e se aventurarem na leitura possivelmente o darão maior valor.

                                                                                               Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite



Filhos de Sangue e Osso (2018) | Ficha técnica:

Título original: Children of Blood and Bonde

Editora: Rocco

Páginas: 548

Nota: 10/10 


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