[Resenha] Legend: A verdade se tornará lenda - Marie Lu
Sinopse: outrora
conhecida como a Costa Oeste dos Estados Unidos, a República é hoje uma nação
em constante guerra com seus vizinhos, as Colônias.
Nascida em
uma família de elite em um dos bairros mais prósperos da República, June, de
quinze anos, é um prodígio militar. Obediente, entusiasmada e comprometida com
seus pais, ela está sendo preparada para o sucesso nos círculos mais elevados
da sociedade.
Nascido nas
favelas do setor Lake da República, Day, de quinze anos, é o criminoso mais
procurado do país. Mas suas ações talvez não sejam tão mal-intencionadas quanto
dizem.
Originários
de mundos completamente diferentes, os caminhos de June e Day poderiam jamais
ter se cruzado. Porém, quando o irmão de June é assassinado e Day se torna o
principal suspeito, os dois se veem encurralados em um jogo de gato e rato. Day
tenta desesperadamente garantir a sobrevivência de sua família, enquanto June
quer vingar a morte do irmão a qualquer preço.
No entanto,
numa reviravolta incrível, os dois descobrem a verdade sobre o que realmente os
uniu e sobre as medidas extremas às quais o país recorre para proteger seus
segredos.
Pleno de ação, suspense e romance, este primeiro e instigante livro da aclamada trilogia Legend é emocionante da primeira à última página.
Opinião: "Legend: A verdade se tornará lenda"
No século XX, o gênero distopia emergiu como um dispositivo de análise radical da sociedade. A palavra distopia é de origem grega e significa lugar nenhum. Desde sua gênese, o gênero fornece elementos para pensar criticamente sobre a sociedade. Obras como “Farenheit 451”, “Nós” e “Admirável Mundo Novo” puseram as distopias em evidência e conquistaram a crítica especializada. No século XXI, sob a influência das distopias clássicas e no intuito de trazer discussões tão relevantes quanto as que elas trouxeram ao público maduro para o público mais jovem, diversos autores publicaram distopias para o público infanto-juvenil e jovem adulto. Nesse contexto, a escritora Marie Lu deu à luz “Legend”, livro que conseguiu reunir diversos aspectos que outras obras do gênero tinham em comum. Infelizmente, na referida obra a autora não conseguiu entregar algo que fosse muito além disso.
A trama é
ambientada em um futuro pós-apocalíptico no qual os Estados Unidos foram divididos
em seções Leste e Oeste e passaram a constituir um palco de disputas políticas
entre colônias e República. A história
possui dois focos narrativos, ambos em primeira pessoa. Um deles é narrado por
Day, adolescente que nada mais é que o fugitivo mais procurado pela polícia no
país. O outro é por June, uma jovem que apesar de ser extremamente talentosa é
habituada a se envolver em encrencas.
Day foi
reprovado em um teste e condenado, em função disso, a trabalhar em formas de
trabalho consideradas pela sociedade desse mundo distópico como indignas. Apesar
de sua reprovação, Day é extremamente talentoso e decidiu não se resignar a
esse destino, tornando-se em um fugitivo. Apesar de sua fama, no início da narrativa
as autoridades políticas do país pouco sabem a respeito de sua fisionomia. Além
disso, seus familiares acreditavam que ele houvesse falecido.
June, por
outro lado, conseguiu realizar a proeza de ser aprovada com nota máxima no mesmo teste no qual Day
foi reprovado. A sua ligação com a família é mais profunda
que a estabelecida por Day. Assim como ele, possui conflitos com o Estado, os
quais são melhor explicados conforme a narrativa avança. Seu irmão, Metias, ao
qual era muito afeiçoada, é morto nos primeiros capítulos, e os fatores
envolvidos nesse incidente conduzem o leitor a prosseguir com a leitura do
livro.
"Legend" reúne diversos elementos que agradam a leitores de distopias infanto-juvenis.
Nelas, costumamos encontrar narrativas impregnadas de suspense e fluidez. Em “Legend”,
Marie Lu criou uma atmosfera de mistério em torno de seu mundo distópico a ponto de despertar a curiosidade do leitor a respeito do seu enredo.
A sua
escrita na história é leve e, apesar de em alguns momentos descrições de ambientes
serem extensas, ela conseguiu impedir que elas se tornassem cansativas. Fluxos de
memórias a respeito do passado a auxiliam a explicar o momento em que a
história se passa. Somado a isso, a construção de capítulos curtos com bem concebidos ganchos
entre eles aliada à divisão dos focos narrativos em momentos de
tensão fizeram de “Legend” uma história com um ritmo eletrizante e difícil de
largar.
Day vive
desde os dez anos de idade nas ruas. Apesar de sua reprovação no teste, possui
um irmão e anseia pela sua aprovação com grande desejo. Há um mistério em
relação à reprovação do personagem no teste que conduz o leitor a descobertas
surpreendentes no curso do enredo.
June é o
tipo de personagem feminino que cativa o leitor pelas suas habilidades e
virtudes. É inteligente e digna de confiança. A sua característica psicológica
que mais despertou a minha admiração reside na expressão de sua indignação
contra aquilo que lhe é imposto mesmo sendo errado e na sua disposição em
realizar sacrifícios para produzir mudanças na sociedade.
A
característica em comum mais marcante entre os dois personagens é o egoísmo.
Apesar de pertencerem a setores distintos da sociedade, a personalidade de
ambos é bem similar. Talvez a explicação disso seja exposta nos livros
seguintes da trilogia.
Nas obras
do gênero distopia, encontramos reflexões que nos permitem visualizar
criticamente a sociedade e suas possibilidades. Nelas, são apresentadas visões
pessimistas em relação ao futuro com vistas a denunciar os revezes que a
perpetuação de determinadas tendências do presente desencadeiem caso não sejam
extintas. Nesse contexto, em livros do
gênero encontramos mais do que uma visão futurista da ficção, mas uma previsão
negativa do futuro caso aspectos do nosso presente não sejam modificados.
Em “Legend”,
Marie Lu problematiza os efeitos da eugenia sobre a educação. O teste no qual
Day foi mal sucedido buscava selecionar os melhores genes para ocupar posições
privilegiadas na sociedade. Em vista dos princípios bioéticos que atualmente
existem, isso pode parecer algo muito distante da nossa realidade. Doce ilusão.
Aqui no
Brasil, por exemplo, é garantido pela Constituição Federal de 1988 o direito à
educação a todas as crianças. Contudo, a partir da instituição da Política
Nacional de Educação Especial (PNEE) por meio de um decreto presidencial no ano
em que estamos, a obrigatoriedade da inclusão de crianças com deficiência na
educação foi flexibilizada. Essa medida foi condenada por especialistas e considerada por eles como um
retrocesso para a construção de uma educação inclusiva.
No século
anterior ao atual, a eugenia esteve intimamente ligada às políticas de educação
no Brasil, quando o ensino público virou alvo de reformas e serviu como um
instrumento de expansão do papel do estado na sociedade. No interior das escolas,
diversos testes e medidas foram aplicados com vistas a diferenciar pessoas
qualificadas das que não o são, realidade bem parecida com a de “Legend”.
Atualmente,
sabemos que a influência da eugenia sobre a educação compromete a mobilidade
social e agrava as desigualdades tanto do ponto de vista econômico quanto do
social. Além disso, a aplicação daqueles testes resultada em uma segregação
entre os estudantes dentro da própria escola, algo hoje condenado.
A eugenia
na primeira metade do século XX era racializada e se baseava em teorias
pseudo-científicas que levavam à crença de que havia uma superioridade das pessoas de origem europeia. Mais do que contribuir para a acentuação das
desigualdades sociais em um país cujo passado escravista ainda não era distante,
a eugenia resultou em práticas e pensamentos discriminatórios que sobrevivem
até hoje em parte considerável dos brasileiros. Embora tenham ocorrido
expressivas melhorias em relação a isso, a chegada de forças conservadoras ao
poder põe avanços e conquistas em risco.
Em “Legend”,
vemos um futuro caótico fruto da vitória das tendências atuais de conflitos
sociais e divisão política. Atualmente, os Estados Unidos, país onde a
história se passa, possuem os piores índices sociais entre os países do
primeiro mundo e um número de pessoas abaixo da linha de miséria superior ao de
países como o próprio Brasil. Essa realidade é explicada por diversos
motivos.
De acordo
com o sociólogo estadunidense Rick Fantasia, o crescimento econômico dos
Estados Unidos já precisou ter como combustível a extinção de sindicatos. A
medida teve como efeito uma maior atração de investimentos nas empregas, mas um
enfraquecimento considerável da defesa dos direitos dos trabalhadores. No final dos anos 90, todas
as conquistas e garantias dos trabalhadores foram progressivamente desmanteladas.
Parte do sucesso dessas medidas se deve à pressão da classe média exercida durante o período em que elas foram aplicadas. Elas permitiram que, durante mais de uma
década, houvessem oportunidades de crescimento e de consumo excepcionais. Foi
durante aquele período em que a classe média participou do entusiasmo em relação
à bolsa de valores.
Não tardou
até que milhões de indivíduos se endividassem com a falência de empresas cujas
ações compraram. Em meio ao desespero da classe média e da pequena burguesia
arruinadas, houve o florescimento de milícias fascistas como o Ku Klux Klan.
Nos dias
que correm, os Estados Unidos não possuem políticas sólidas de valorização da
renda dos trabalhadores. De acordo com Philip Alston, relator sobre a pobreza
extrema, o país não usou a sua riqueza, tecnologia e poder para retirar as
dezenas de milhões de estadunidenses que vivem abaixo da linha de pobreza.
Em “Legend”,
encontramos tudo o que há de agradável nas outras distopias. A falha da autora
ao conceber a obra foi em não trazer inovações que tornassem a sua distopia
única diante das que temos à nossa disposição. Embora a história seja bem
construída, ela não é suficientemente cativante. A meu ver, o livro aqui
resenhado é mais do mesmo e os seus personagens precisam de uma boa dose de
sal.
A impressão que Marie Lu me transmitiu em “Legend” foi a de que ela tinha a intenção de agradar os fãs de “Jogos Vorazes” e “Divergente”. A história conseguiu reunir elementos dessas duas séries e obteve sucesso quanto a isso. Porém, obter novos fãs com uma história que não se diferenciou o bastante de outros livros do gênero deve ter sido um grande desafio. “Legend” não deixa de ser um bom livro, no entanto. Aliás, ele me deixou ávido pela sua continuação. Se há algo em que Marie Lu não errou foi em criar vários ganchos para o livro seguinte. E nada descarta a hipótese de eu mudar de opinião quanto à trilogia após a leitura dos próximos volumes.
Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite
Título original: Legend
Autor(a): Marie Lu
Editora: Rocco
Páginas: 256
Nota: 7/10
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