[Resenha] Orgulho - Ibi Zoboi


Sinopse: Zuri Benitez tem orgulho. Orgulho do Brooklyn, de sua família e de suas raízes afro-latinas. Mas orgulho não é o suficiente para salvar seu bairro da gentrificação e de se tornar irreconhecível.

Quando a rica família Darcy se muda para o outro lado da rua, Zuri não quer contato com seus dois filhos adolescentes, mesmo quando sua irmã Janae começa a se apaixonar pelo encantador Ainsley. Acima de tudo, ela não suporta o crítico e arrogante Darius, mas eles são forçados a se entender, e o que antes era um confronto se torna uma inesperada amizade.

Agora, com quatro irmãs a empurrando em direções diferentes, com o adorável Warren em busca de sua atenção e com as candidaturas para a faculdade chegando, Zuri luta entre encontrar seu lugar na paisagem em transição de Bushwick ou perder tudo.

Nesta adaptação contemporânea do clássico Orgulho e preconceito, a autora aclamada pela crítica, Ibi Zoboi, habilidosamente equilibra identidade cultural, classe e gentrificação com a mágica do primeiro amor em sua vibrante versão do amado romance.

Opinião: “Orgulho”

Para algumas correntes geográficas, o espaço geográfico corresponde ao espaço construído e modificado pelo homem e representa o ambiente no qual estão inseridas as relações entre os seres humanos e as desses com a natureza. Ao longo da História, ocorreram diversas modificações no espaço geográfico localizado no Brooklyn, bairro nova-iorquino. Os territórios que deram origem ao bairro foram inicialmente ocupados por holandeses e, com o passar do tempo, foram sendo habitados por pessoas de diversas origens.

Atualmente, diversos locais em todo o planeta sofrem um processo no qual bairros ocupados em sua maior parte por pessoas de baixo poder aquisitivo passam a representar, para pessoas afortunadas, um destino migratório. A chegada dessas pessoas a bairros populares tem como efeito a valorização imobiliária e o surgimento da perspectiva de melhorias nas condições de infraestrutura dessas regiões. Contudo, o referido processo, denominado gentrificação, traz diversos revezes quando as relações de pertencimento que os habitantes de um bairro têm em relação a ele são negligenciadas em benefício da chegada de pessoas de maior poder aquisitivo.

Em “Orgulho”, Ibi Zoboi problematiza os aspectos negativos da gentrificação ocorrida no bairro estadunidense do Brooklyn. Além de retratar o tema e sobre ele refletir, a autora buscou, a partir da obra, valorizar as religiões de matriz africana, historicamente estigmatizadas, e expor diversos problemas que assolam o ambiente que a rodeia, a exemplo dos diversos percalços que uma pessoa economicamente desfavorecida há de enfrentar para ascender socialmente. Para realizar essas reflexões e, simultaneamente, entreter o leitor, Ibi Zoboi faz uma releitura de “Orgulho e Preconceito” de Jane Austen em “Orgulho”, concedendo aos negros representatividade na Literatura.

Zuri Benitz é uma moradora do Brooklyn. Ela possui quatro irmãs: Janae, sua irmã mais velha, Marisel, Kayla e Layla. Zuri e suas irmãs conhecem Darius Darcy, novo morador do Brookly e membro de uma família afortunada que se mudou para o bairro diante do processo de gentrificação. Darius é irmão de Ainsley, o qual mais tarde estabelece um relacionamento com Janae. 

Zuri e suas irmãs são afrodescendentes e não possuem uma situação financeira tão favorável quanto a dos Darcy. No seio familiar, Janae é a primeira mulher da família a se tornar estudante universitária. Zuri, por sua vez, aspira a estudar na universidade de Howard. Contudo, essa universidade, assim como muitas outras nos Estados Unidos, não é pública, o que representa um grande obstáculo para Zuri concretizar esse objetivo. Como a moça conseguiria atingir o seu grande objetivo diante desse entrave?

Eis o cenário do enredo de “Orgulho”. Aqui, a escrita de Ibi Zoboi consegue transmitir ao leitor todas as emoções que a autora deseja. Embora seja releitura de um clássico, “Orgulho” não apresenta uma linguagem densa a ponto de cansar o leitor e, diferente do que ocorre em “Orgulho e Preconceito”, não há a necessidade de se realizar uma leitura tão atenta, uma vez que descrições de ambientes e personagens não são extensas a ponto de fazer com que os acontecimentos principais da história passem despercebidos ao se realizar uma leitura veloz que um cotidiano corrido possa exigir. 

 Apesar de “Orgulho” apresentar uma narrativa mais dinâmica que a de “Orgulho e Preconceito”, a obra de Ibi Zoboi é tão inspirada na de Jane Austen que talvez não existisse caso a dessa não houvesse sido lançada séculos antes. Assim como em “Orgulho”, a protagonista de “Orgulho e Preconceito” também é uma mulher com quatro irmãs, sendo a segunda filha de seus pais.

Assim como Zuri, protagonista de “Orgulho”, Elizabeth, a de “Orgulho e Preconceito”, também mostrava insatisfação com os valores de sua época, como o da visão de que o casamento constituía um acordo de interesses. Assim como em “Orgulho”, a narrativa de “Orgulho e Preconceito” é iniciada após a chegada de uma pessoa afortunada a um novo ambiente. 

Em “Orgulho”, os relacionamentos entre os personagens se desenvolvem sob circunstâncias símiles às que ocorrem em “Orgulho e Preconceito”. Outra semelhança entre as obras está no sobrenomes “Benitz” e “Bennet” das protagonistas de cada uma, simultaneamente.  A título de curiosidade, “Darcy”, o sobrenome da família afortunada que chega ao Brooklyn diante do processo de gentrificação é o mesmo do rapaz com quem Elizabeth se envolve.

À sua época, “Orgulho e Preconceito” criticou diversos valores do ambiente social em que a autora estava imersa. Em meio a uma sociedade na qual a mulher deveria desempenhar, unicamente, as funções de mãe e esposa, “Orgulho e Preconceito” trouxe como protagonista uma mulher que clamava por independência. Diante de uma sociedade em que a união civil representava um acordo que permitiria a um casal ascender socialmente ou manter as boas condições financeiras em que já se encontram, Jane Austen expõe os diversos malefícios que essa visão traz e inova ao mostrar que a solução de problemas sociais e financeiros poderia não vir a partir do casamento.

Devido às críticas sociais que fez em “Orgulho e Preconceito” e à qualidade de sua narrativa, pelo menos para a época em que a obra viera à luz, Jane Austen é considerada por essa e por outras obras a segunda pessoa mais importante para a Literatura inglesa, estando atrás unicamente do emérito William Shakespeare.

Todavia, muito se ilude quem supõe que Ibi Zoboi não problematiza diversos problemas sociais ao fazer uma releitura de uma obra de Jane Austen. “Orgulho” retrata tanto problemas locais do Brooklyn e dos Estados Unidos quanto problemas que acometem diversas regiões do planeta.

Nos Estados Unidos, uma das principais virtudes do ensino superior é a grande variedade de universidades. Devido à extensão de seu ensino superior e ao seu modelo único de universidade, os Estados Unidos se tornaram pioneiros na ideia de educação superior de massa. Outro mérito da educação estadunidense reside no pioneirismo do país na universalização da educação básica.

Em contrapartida, no país instituições privadas de ensino concentram cerca de 20 milhões de estudantes. Para ingressar em uma faculdade privada, parte considerável dos estudantes recorre ao crédito estudantil. Após recorrerem a esse financiamento, os estudantes passam a arcar com um elevado risco de contrair dívidas com perspectiva limitada de serem quitadas. Atualmente, nos Estados Unidos, há cerca de 44 milhões de estudantes que carregam algum tipo de dívida contraída no período de estudos.

Diante desse cenário, muitos estudantes optam por financiarem o ensino superior por conta própria ou por tentar algum tipo de bolsa. É isso o que ocorre em “Orgulho”. Zuri vai a Howard com o objetivo de conhecer a universidade e o de saber como proceder para obter uma bolsa. Na visita que fez, conheceu pessoas que abandonaram o curso que faziam devido aos custos requeridos para financiá-lo.

O problema é agravado devido ao fato de apenas 30% dos empregos gerados nos Estados Unidos dependerem de uma formação universitária. Além disso, ele é um problema comum no país, que possui uma taxa de conclusão de curso pelos estudantes inferior à da maioria das nações desenvolvidas.

Em “Orgulho”, Ibi Zoboi também dá visibilidade a outros temas: o da representatividade dos negros na Literatura e o da valorização das religiões de matriz africana. Ambos não têm relevância restrita à realidade norteamericana. 

Desde a infância, o ser humano se espelha naquilo que está a seu redor. Ao assistir a um filme ou ler algum livro, uma criança se depara com personagens que a inspiram, e com os quais podem ou não possuir características em comum , representando-a ou não. Mais do que representar a criança, os personagens fictícios padronizam características a serem valorizadas.

Na televisão, no cinema, na Literatura, no teatro ou em qualquer outro veículo de narrativas fictícias, é natural trazer como personagens pessoas brancas portadoras de uma fisionomia com grande propensão a se tornar um padrão excludente de beleza. Nesse contexto, quando um autor não concede representatividade a pessoas negras com feições que lhe são típicas, essas pessoas não enxergam em si próprias um exemplo a ser seguido, e podem empreender tentativas de se adequar a esses padrões ou podem acabar não aceitando a si próprias e desenvolverem um complexo de inferioridade.

Sabendo das consequências da ausência da representatividade de afrodescendentes na ficção, Ibi Zoboi em “Orgulho” realiza essa concessão. Além de representar pessoas negras na Literatura, Ibi Zoboi constrói um romance entre pessoas negras inspirando-se em outro romance, escrito por uma mulher branca, o qual contribuiu para a construção de uma nova idealização do amor mas que por não ter a falta de representatividade como um problema que atingisse a autora, acabou se esquecendo de conceder essa representatividade.

Atualmente, diferente da época em que Jane Austen lançara “Orgulho e Preconceito”, conceder representatividade aos negros na ficção não é algo tão incomum. Ibi Zoboi foi além: buscou valorizar as religiões de matriz africana na Literatura, o que hoje ainda é algo insólito. A intolerância a religiões de matriz africana não é exclusividade dos Estados Unidos.

Aqui no Brasil, por exemplo, religiões de matriz africana são alvo de 59% dos crimes decorrentes de intolerância. No nosso país, o surgimento de religiões de matriz africana ocorreu no interior das senzalas, quando o culto aos orixás passou a representar uma forma de rebeldia ao modo injusto de vida que a escravidão impunha às suas vítimas. O culto a divindades distintas da religião professada pelos seus senhores trazia a crença de que um dia os escravos se libertariam de sua condição.

Ainda em solo brasileiro, em uma época em que o culto de religiões africanas constituía um crime, passa a haver o surgimento do sincretismo entre as crenças católicas e africanas, o que promoveu mudanças na cultura religiosa do país. Não obstante, professar religiões de matriz africana ou afro-brasileiras continuou sendo um crime, condenando os seus fiéis ao anonimato. Devido ao fato dessas religiões não serem aceitas pela sociedade, pessoas que as professavam eram perseguidas e sofriam as mais desumanas formas de discriminação.

Com o passar do tempo, a partir de uma luta política, os afrodescendentes foram conseguindo certa tolerância quanto às diversas crenças que poderiam professar e retira-las da criminalidade. No entanto, diversos valores de intolerância historicamente construídos ainda são presentes em nossa sociedade. Nos Estados Unidos, a intolerância a essas religiões também possui uma construção histórica e há de ser combatida.

Tendo em vista essa necessidade, em diversos momentos de “Orgulho”, Ibi Zoboi buscou valorizar religiões de matriz africana. Na obra, encontramos diversas menções a Oxum, que na religião iorubá representa uma linda deusa que reina sobre as águas doces e está diretamente ligada ao empoderamento feminino.

Outro ponto discutido sobre o livro foi a dificuldade que pessoas economicamente menos favorecidas enfrentam para ascender socialmente. Dentro dessa discussão, Ibi Zoboi aborda diversas questões envolvidas com o processo de melhorias na condição econômica que uma pessoa enfrenta. Na obra, Ibi Zoboi ilustra um preconceito que a sua protagonista possui em relação à família Darcy, que é afortunada, mostrando que pessoas ricas, incluindo as afrodescendentes, podem haver chegado onde se encontram a partir de seus próprios esforços, precisando enfrentar as dificuldades que pessoas de baixo poder aquisitivo hão de atravessar para modificar as suas condições de vida.

Ao longo do enredo, Ibi não se restringe a ilustrar o convívio entre pessoas de diferentes condições sociais ou o de partes ricas e pobres de um mesmo local. Ela constrói romances entre pessoas dentro desse convívio e aborda diversas questões neles envolvidos.

Quem já leu “Orgulho e Preconceito” logo percebe que o livro resenhado e analisado fez uma adaptação muito engenhosa do romance de Jane Austen aos problemas que a sociedade e, em especial, Ibi Zoboi vivenciam. Contudo, quem empreendeu a leitura do referido romance acha o de Ibi Zoboi previsível e, talvez, pouco criativo.

Esse é, para mim, a única imperfeição de “Orgulho” que me desagrada. Ibi Zoboi confronta diversos valores, mas o faz a partir de uma escrita agradável e capaz de sensibilizar o leitor, possuindo maior potencial de conquistar a sua adesão na desconstrução daqueles valores.

“Orgulho” é o tipo de livro extremamente coerente que não deixa pontas soltas. Além disso, a sua autora faz descrições de ambientes e personagens de forma satisfatória, não se estendendo demais e nem sendo breve a ponto de comprometer a qualidade e a complexidade da narrativa.

A história é ótima, apesar de que leitores de Jane Austen possam considera-la pouco original. Contudo, a obra não deixa de ter uma narrativa muito bem construída e de possuir uma importância histórica que poderá ser lembrada tão bem quanto a das obras de Jane Austen caso as mudanças nos valores da sociedade inspiradas por Ibi Zoboi se materializem. Devido à escrita agradável e sensibilizadora, indico “Orgulho” a qualquer pessoa que tenha apreço por livros, incluindo tanto as que vivenciam os problemas descortinados por Ibi Zoboi quanto as que deles não padecem mas que se encontram abertas a mudança de pensamento. 


Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite


Ficha técnica:
Título original: Pride
Autor: Ibi Zoboi
Número de páginas: 272
Ano de publicação: 2019
Nota: 9/10

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