[Resenha] Lolita - Vladimir Nabokov
Sinopse: Polêmico, irônico e
tocante, este romance narra o amor obsessivo de Humbert Humbert, um cínico
intelectual de meia-idade, por Dolores Haze, Lolita, 12 anos, uma ninfeta que
inflama suas loucuras e seus desejos mais agudos. Através da voz de Humbert
Humbert, o leitor nunca sabe ao certo quem é a caça, quem é o caçador. A
obra-prima de Nabokov, agora em nova tradução, não é apenas uma assombrosa
história de paixão e ruína. É também uma viagem de redescoberta pela América; é
a exploração da linguagem e de seus matizes; é uma mostra da arte narrativa em
seu auge. Na literatura contemporânea, não existe romance como Lolita.
Opinião e análise: Lolita
Foi no ano de 1899, na cidade russa de São Petersburgo, que nascera
Vladimir Nakobov, um homem que décadas mais tarde viria a ser considerado como
um dos mais brilhantes romancistas do século XX. Nabokov era filho de pais
ricos e pertencia à nobreza russa. Após a Revolução de 1917 ocorrida na Rússia,
viu-se na contingência de sair da nação com a sua família.
Nabokov passou por diversas nações antes de se estabelecer
permanentemente em uma. Após a Revolução Bolchevique, mudou-se para a Crimeia.
Aqui, o seu pai, que possuía forte atuação política, tornou-se ministro. Em
meio a esse cenário conturbado, Nabokov apurou as suas aptidões para a
Literatura.
Embora não possamos limitar a
importância e as grandes realizações de Vladimir Nabokov aos feitos da obra
“Lolita”, esta foi considerada o maior êxito comercial do autor. O conteúdo da
obra foi fortemente influenciado pelo contexto histórico e político da época em
que foi escrito, e, também, pelo conhecimento científico até então produzido.
Abordá-los em associação com o enredo é essencial para compreender o motivo da
obra haver se tornado uma das mais importantes do século XX.
“Lolita” é uma obra considerada
bastante polêmica e possui um conteúdo infame. Isso pode explicar todos os
obstáculos que Nabokov houve de enfrentar para conseguir publicá-la. Após cinco
anos de trabalho na obra, Nabokov finaliza “Lolita” em 1953. Contudo, foi
somente em 1955 que veio a ocorrer a sua publicação. Diversas editoras se
recusaram a publica-la por considerá-la um lixo pornográfico.
Após assinar um contrato com a
editora “Olympia Press”, Vladimir Nabokov finalmente conseguiu publicar o
manuscrito de “Lolita” sob seu próprio nome. Rapidamente, todos os exemplares
de “Lolita” se esgotaram e o romance apareceu na lista dos melhores livros de
1955 na quinta colocação. Em contraste, a obra foi rechaçada por diversos
críticos especializados.
Devido à repercussão do conteúdo da
obra, considerado por muitos obsceno, ela foi banida do Reino Unido durante dois
anos. A recepção da obra foi marcada um conflito de opiniões: uns acharam que o
seu tema principal era o amor, outros que era o abuso. Embora não possamos nos
furtar de condenar determinados aspectos da obra, acredito que mesmo entre
aqueles que discordam quanto a qual seja o seu tema central deve haver um
consenso sobre o seguinte aspecto: a qualidade da narrativa e da escrita de
Nabokov.
O enredo de Lolita é iniciado após, no
primeiro capítulo, Humbert Humbert, protagonista e narrador da história, apresentar
Lolita ao leitor, se dirigir ao júri ao qual a narrativa é destinada e nos
presentear com um dos mais lembrados trechos da obra:
“ Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu
pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato
para encostar, os três, nos dentes. Lo. Li. Ta.
Ela
era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de
meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha
pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita” (NABOKOV, 1955, p. 13)
Nos próximos dez capítulos,
Nobokov apresenta a vida de Humbert Humbert antes de conhecer Lolita. Humbert
Humbert nasceu em 1910, em Paris. Sua mãe morreu quando ele tinha apenas 3 anos
de idade. Seu pai possuía um luxuoso hotel em Riviera. Durante um dos verões de
sua infância, Humbert conheceu Annabel Leight, o seu primeiro amor.
As descrições de Humbert são
feitas de modo extremamente agradável, o que estimula o leitor a prosseguir com
a leitura. Annabel correspondeu ao sentimento que Humbert sentia por ela, e,
em decorrência disso, ocorreu um envolvimento amoroso entre eles. Infelizmente,
quatro meses após o início do romance entre os jovens, Annabel morre por febre tifoide em Corfu, ilha grega.
Atualmente, a incidência dessa
doença é rara, uma vez que no século XX a introdução da vacinação e de
melhorias na higiene e no saneamento público foram progressivamente
disseminadas. Contudo, na época do ocorrido a jovem Anabelle, as medidas
preventivas da doença dentre as quais estava inclusa a vacinação ainda não eram
tão difusas quanto o são hoje. A descoberta da vacina ocorrera em 1896, tendo o
seu uso introduzido primeiramente nas forças armadas, as quais tinham
combatentes mortos pela febre tifoide em uma quantidade maior que a de mortos
pelas batalhas decorrentes da própria guerra.
Posteriormente, a vacina foi
sendo progressivamente difundida durante o século XX. Ao mesmo tempo, melhorias
no saneamento básico e medidas de higiene foram sendo disseminadas, o que
promoveu uma forte redução no número de casos e mortes da doença, os quais
ocorrem atualmente com raridade. Dentre as melhorias no saneamento básico,
destaca-se a cloração da água potável, a qual trouxe um impacto significativo
na redução dos casos da doença.
Contudo, o aspecto mais
importante do romance entre Humbert e Annabel, pelo menos para o curso do
enredo, foi o fato de que Humbert viu em Lolita a projeção de diversas
características de Annabel, fato esse fortemente associado ao seu amor à
primeira vista por Lolita. Isso pode ser constatado a partir da fala do próprio
narrador:
“ Existem dois tipos de memória visual: um em que recriamos com a
máxima perícia uma imagem no laboratório da nossa mente, mantendo os olhos bem
abertos (e aqui vejo Annabel em termos bem gerais como: “pele cor de mel”,
“braços finos”, “cabelo castanho cacheado”, “cílios longos”, “gente boca clara);
e em outros que evocamos instantaneamente, de olhos cerrados, no forro escuro
das pálpebras, a réplica objetiva e opticamente fiel de um rosto amado, um
pequeno fantasma em cores naturais (e é assim que vejo Lolita). (NABOKOV,
1955, p. 16)
A seguir, são retratadas
cenas de outras garotas com quem Humbert se envolveu ou desejou se envolver
antes de conhecer Lolita. Durante a sua vida universitária, Humbert desenvolveu
a ideia do significado das meninas a que chamava de “ninfetas”. Para Humbert, o
termo ninfeta designa donzelas dos 9 aos 14 anos que, a certos viajantes
enfeitiçados, consideravelmente mais velhos que elas, revelam uma natureza que
não é humana, mas nínfica.
Nos dias atuais, muitos
pensam que o termo foi concebido pelo próprio Vladimir Nabokov. Na realidade,
porém, o termo foi cunhado por Michael Drayton em 1612 no “ The Century
Dictionary”. A palavra é derivada de “ninfa”, que na mitologia grega se refere
a figuras femininas que personificam a fecundidade da natureza.
A meu ver, o emprego do
termo por Humbert representa uma justificativa infundada para a prática da
pedofilia. Todas as crianças são dignas de terem a sua integridade física e
moral preservadas independente de quaisquer sensações que despertem em homens
mais velhos. Humbert acredita que nem todas as crianças possuem aptidão para
serem ninfetas, o que, na sua mente, justificaria o fato de serem dignas de
respeito, quando na realidade todas o são, incluindo as que possuem esse
potencial.
Essa não foi a única
tentativa de Humbert de relativizar a perversão moral que a pedofilia
representa. Nos capítulos seguintes, Humbert fez menção a leis inglesas e a
casos de pedofilia registrados em nossa história, a exemplo dos que foram
cometidos por Jaime I na Inglaterra, Dante em 1274 após apaixonar-se por uma
moça de apenas 9 anos de idade e velhos de 80 anos de outra cultura que copulam
com meninas sem nenhuma condenação manifesta pela sociedade.
Embora esses sejam
aspectos condenáveis da obra, eles põem em evidência a qualidade da escrita de
Nabokov. A linguagem com que narra a história é extremamente agradável e
poética, o que faz com que até nos momentos mais espantáveis do enredo o leitor
julgue a narrativa aprazível. Além disso, podemos notar que a construção dessa
narrativa requereu a aquisição de um amplo conhecimento nos ramos da História e
do Direito para ser concebida.
Após tentar relativizar
a vileza da pedofilia, Humbert relata ao leitor mais relacionamentos que teve
com garotas mais jovens e o explica que a sua atração por ninfetas foi forjada
muito antes dele conhecer Lolita. Depois de se mudar para a cidade
estadunidense de Nova York, Humbert se hospeda na casa da senhora Haze. Nela,
ele conhece Dolores Haze, a nossa Lolita, apaixonando-se à primeira vista.
A narrativa de
Humbert constitui uma peça destinada a um júri com o objetivo de relativizar a
gravidade de um crime cometido não contra Lolita, mas movido pela obsessão que
ele tinha por ela. A pedofilia é um dos temas centrais da obra, mas em diversos
momentos a obsessão de Humbert por Lolita acabou se tornando o ponto mais
marcante de seu enredo. A forma como ele é narrado foge ao padrão da maioria
das narrativas a nossa disposição.
Ele possui um tom
autobiográfico, é feito a partir de memórias e de um jogo entre passado e
presente muito bem arquitetado. A todo momento Humbert expõe emoções eróticas
explícitas, o que evidencia o fato de o amor dele por Lolita também representar
um dos principais aspectos da obra. Apesar de haver sido considerado obsceno
por muitas pessoas, não é essa a impressão que tenho: mesmo nas cenas eróticas
eu pude notar que há um predomínio da vazão dos sentimentos de amor por Lolita
sobre a promiscuidade da pornografia.
Ao mesmo tempo em
que narra cenas de sexo de forma extremamente poética e sem desagradar o leitor,
Humbert conduz a sua opinião a respeito da influência das circunstâncias em que
cometeu o crime, o qual não irei revelar por comprometer a qualidade da leitura
de quem desejar vir a empreendê-la. A estilística de Nabokov é tão refinada que
Humbert consegue obter relativo sucesso com relação a esse objetivo.
Eis uma das razões
por que aprecio tanto a obra do ponto de vista da qualidade da leitura.
Contudo, um leitor atento logo percebe que a narrativa de Humbert não é
confiável, uma vez que ela é feita a partir de seu único ponto de vista, não
levando em consideração o das demais pessoas envolvidas. Outro fator que põe em
questão a confiabilidade da narrativa de Humbert é o fato dele confessar ser um
doente mental.
Nos dias atuais, a
diminuta quantidade de tempo que um leitor dispõe para ler pode levá-lo à crença
de que Nabokov se estendeu demasiadamente na narrativa de alguns fatos, os
quais não influenciaram grandemente o curso de seu desfecho. Contudo, em muitos
desses acontecimentos narrados, Nabokov põe nas entrelinhas diversas questões
dignas de serem refletidas. Por essa razão, devo aconselhar o pretendente à
leitura da obra que o faça com calma, de modo a possibilitar o desfrute de
todos os seus momentos.
Pouco tempo após Humbert se
apaixonar por Dolores Haze, é narrada a primeira cena de carícias entre eles. Dolores
sai de casa para uma colônia de férias. Enquanto a jovem se diverte, Humbert
emite os primeiros sinais da sua obsessão por ela. Tamanha era a obsessão de
Humbert por Lolita que ele chegou a estabelecer uma união civil com a sua mãe,
Charlotte Haze, para não perder a sua amada de vista.
Charlotte era uma
esposa tomada por um ciúme imorredouro. A partir dele, conseguiu fazer com que
Humbert relevasse a última mulher com a qual estabeleceu uma união civil:
Valéria. Ele não se limitou a revelar o seu nome, mas também falou a Charlotte
sobre muitas das amantes que teve enquanto esteve casado com Valéria. Sobre
Dolores, não chegaram a conversar com tanta frequência.
Não obstante, ter a
filha de sua mulher como amante era um obstáculo difícil de ser contornado, o
que causava grande incômodo em Humbert. Para ele, a solução para o impasse seria
destruir Charlotte. A naturalidade com que Humbert emite essa declaração pode
causar indignação no leitor, mas, assim mesmo, ele continua a tentar defender a
si próprio e a pessoas como ele, conforme podemos constatar no seguinte trecho:
“ Não somos monstros sexuais! Não estupramos, como tantos soldados
estupram. Somos cavalheiros infelizes e contidos, de olhos caninos,
suficientemente bem integrados para controlar nossos impulsos na presença de
adultos, mas prontos a trocar anos de nossas vidas para acariciar uma ninfeta.
Enfaticamente, não somos assassinos. Poetas nunca matam. Oh, minha pobre
Charlotte, não me odeie em céu eterno, envolta numa alquimia eterna de asfalto
e borracha, metal e pedra – mas, graças a Deus, não água, não água!” (NABOKOV,
1955, p. 104)
Além de
percebermos que Humbert não é confiável, também percebemos que ele é um
pervertido. Diferente de muitos casos de pedofilia que ocorrem no nosso
cotidiano, a prática de Humbert não é movida por uma incapacidade de despertar
o interesse de mulheres adultas, mas pela sua obsessão pelas meninas que tomava
por ninfetas. Humbert transmite a impressão de que é honesto na veracidade dos
fatos que narra, porém é nítido que ele o faz buscando manipular a opinião do
leitor.
Isso põe em
evidência duas coisas. A primeira, que Humbert é um cínico que se vale de
floreios na linguagem para relativizar diversos crimes cuja força motriz foi a
pedofilia. A segunda é que somente autores extremamente talentosos conseguiriam
criar esse tipo de narrativa, que choca o leitor e, concomitantemente, o
agrada.
Charlotte e Dolores, apesar de
serem mãe e filha, não apresentavam uma relação amistosa, o que se devia à competitividade
que uma filha pode vir a desenvolver com a sua mãe. Dolores não apenas desejava
provar que era portadora das mesmas virtudes que Charlotte, mas que as possuía
em maior grau. Esse comportamento pode ser explicado pelo “Complexo de
Electra”, conceito criado pelo suíço Carl Gustav Jung, psiquiatra e
psicoterapeuta.
O conceito
engendrado por Jung é símile de outro criado por Sigmund Freud, psicanalista, o
“Complexo de Édipo Feminino”. De acordo com o Complexo de Electra, uma criança
possui um vínculo afetuoso muito forte com a figura materna. No entanto, a
partir dessa idade ela passa a querer chamar a atenção do pai e, para isso,
passa a imitar comportamentos da mãe.
A menina passa a
querer se vestir de modo similar a sua mãe e a desejar possuir as mesmas
qualidades que ela para, inconscientemente, agradar o seu pai. É isso o que vemos
em “Lolita”: Dolores é uma garota ainda presa a futilidades que possui uma rivalidade
interna em relação a Charlotte. Para superar o complexo de Electra, psicólogos
aconselham que haja uma discussão entre pai e filha a respeito do que é o amor,
de modo a elucidar a diferença existente entre o amor nutrido entre filha e pai
e o amor que uma mulher alimenta por seu marido.
Superar o
complexo de Electra é um grande desafio para Dolores, uma vez que ela não tem a
companhia de seu pai, mas a de um padrasto, o protagonista da obra, Humbert.
Humbert não tem esse tipo de diálogo com Dolores. Ao contrário, ele é seu
amante, tendo se casado com Charlotte apenas para se manter próximo da garota.
Apesar de que o
comportamento de Humbert seja visivelmente condenável, em vários momentos do
enredo ele procura relativizar os seus crimes valendo-se de justificativas que,
para qualquer leitor contemporâneo, não conseguem justificá-los. Em um deles,
Humbert tenta conduzir o leitor à conclusão de que Dolores é promíscua ao
mencionar o fato de que ele não foi o primeiro homem com a qual ela se
envolveu, o que chegava a entristecê-lo. Na segunda parte da história, dividida
em três, ele narra cenas em que é chamado por uma professora para discutir
sobre a situação de Dolores na escola, marcada por um desempenho decadente e
insatisfatório e por um comportamento impróprio, em que era vista chupando o
lápis enquanto fazia atividades avaliativas ou trabalhos acadêmicos, o que não
era incomum, à época, para meninas que chegavam à fase da puberdade.
Do período
em que “Lolita” foi lançada até poucas décadas atrás, relações sexuais entre
adultos e crianças eram vistas como comuns e até como aceitáveis. Com o tempo,
essa prática passou a ser considerada condenável e diversas discussões que
visavam garantir a integridade física e moral das crianças vieram à luz. À
época de seu lançamento, a obra era condenada mais pelo seu conteúdo erótico.
Hoje, é condenada mais pelo abuso e pela
pedofilia. Em diversos momentos da obra, foram retratadas cenas em que Dolores
teve contato físico com Humbert contra a sua vontade, apesar de que tempos
antes ele tenha dito ao júri que não era um estuprador, se colocando a partir
desse momento em uma situação de contradição. Em virtude do fato de a pedofilia
não ser vista como algo tão condenável como o é hoje, Humbert consegue comover
o leitor da época do lançamento mesmo em meio à narração de cenas obscenas, o
que não teria sido possível sem o brilhantismo da escrita de Vladimir Nabokov.
Podemos
constatar diversos aspectos repulsivos em “Lolita”, mas ele também desempenhou
um importante papel para o empoderamento feminino e para o feminismo. O
feminismo foi fundado em 1880, na Inglaterra. Ele é considerado um movimento
múltiplo, que busca neutralizar as disparidades de poder entre o sexo masculino
e o sexo feminino e que possui como principal oponente o machismo, corrente que
deslegitima a figura feminina com o intuito de manter privilégios de gênero
para os homens.
À época em
que “Lolita” fora publicada, o monopólio da participação masculina em diversos
setores prestigiados da sociedade como a ciência, a política, a educação e o
cinema foi bastante contestado. A Literatura é um dos setores prestigiados da
sociedade, e, por isso, também teve o monopólio dos homens contestado. Uma das
reivindicações do movimento feminista era a da remoção dos diversos obstáculos
impostos à mulheres para se tornarem escritoras em uma época em que somente
homens escreviam.
Combater
problemas da sociedade e lutar para que as relações de poder que beneficiam
alguns e oprimam outros tem como uma de suas primeiras etapas o reconhecimento
de que esses problemas e essas relações existem. Em “Lolita”, embora não tenha
interessado a Vladimir Nabokov atender as essas demandas, ele expôs diversos
problemas à época enfrentados pela mulher.
A partir
da instituição do patriarcado, a mulher foi designada para servir e ser
submetida ao homem. Ao longo de toda a História, o patriarcalismo foi enraizado
na sociedade, o que pôde ser visto em diversas culturas ocidentais a a partir
do momento em que se inaugurou a visão de que o gênero feminino representava o
motivo do pecado e da corrupção masculina e que deveria ter como principal
função fazer companhia ao homem, sem ter protagonismo algum na História. A
disseminação desses valores fez com que a mulher fosse vista durante muito
tempo como um sexo frágil e totalmente dependente da figura masculina.
Nos encontramos diante de uma cultura
sexista, na qual se observa a mulher como um objeto de desejos e prazeres, o
que foi visto em “Lolita”. Essa visão está ligada à erotização e à hipersexualização
do corpo feminino e está associada à cultura do estupro que perdura até os dias
atuais, embora seja combatida. A obra também expôs a romantização da pedofilia,
a qual veio a ser combatida não muito tempo após a sua publicação.
Outra questão
exposta pela obra, que embora também não tenha sido apresentada com um viés
combativo, foi a de creditar a culpa da agressão do pedófilo à vítima de
pedofilia. Humbert buscou incutir na mente do leitor a sua crença de que Lolita
era aliciadora de seus crimes e a de que ele fora tomado pela sua sedução,
estando disposto a cometê-los por outras ninfetas. Essa visão foi combatida
tempos depois, e ainda o é atualmente.
Nos dias atuais, Lolita é vista
como uma grande inspiração para luta tanto pelos direitos femininos quanto
contra o abuso sexual de crianças e adolescentes. Embora o romance vitimize o
agressor, “Lolita” é considerada uma obra que promoveu uma revolução de
costumes. Além de ilustrar o conceito do complexo de Electra proposto por Carl
Jung, a obra chegou a inspirar a criar a construção de outro conceito, o do
complexo de Lolita.
De acordo
com ele, as meninas que pelo complexo de Electra ainda possuem a fixação pelo
pai passam a ver em homens mais velhos uma oportunidade de participar de
aventuras românticas. Em “Metafísica do Amor e da Morte”, Arthur
Schopenhauer, filósofo alemão, teorizou
que o amor era uma ilusão humana que tencionava a preservação da nossa espécie.
Em quase todas as culturas, é natural que haja uma diferença de idade entre
homem e mulher durante o casamento, mas não uma distância tão grande quanto a
existente entre Humbert Humbert e Dolores Haze.
Nesse contexto, notamos que a obra “Lolita”
não trouxe apenas benefícios para o progresso dos direitos femininos ao expor
as cenas de abuso que Dolores sofreu após a chegada de Humbert a seu ambiente
familiar. A obra também inspirou a criação de um padrão de beleza único a ser
imposto às mulheres. Ao longo das décadas que sucederam o lançamento de
“Lolita”, vimos a disseminação desse padrão dentro do seio da própria cultura
pop.
Cantoras como
Britney Spears, Paris Hilton e Miley Cyrus, durante determinadas fases da
carreira, contribuíram para a propagação desse padrão, o qual causa opressão às
mulheres. Naomi Wolf, feminista estadunidense, realiza ampla discussão sobre os
malefícios que a construção de padrões de beleza bem como a sua imposição às
mulheres causam diversos revezes ao gênero feminino na obra “O Mito da Beleza:
como as imagens de beleza são usadas contra a mulher”. A influência de “Lolita”
sobre a construção desses padrões de beleza também foi amplamente discutida
pela filósofa Simone de Beauvoir em “ Brigitte Bardot e a síndrome de Lolita
& outros escritos” e por Meenakshi Gigi Durham, estudioso indiano, em “ O
Efeito Lolita: a sexualização das adolescentes pela mídia, e o que podemos
fazer diante disso”.
Nabokov se
opunha ao freudismo, porém alguns comportamentos “Humbert” podem se explicados
à luz de conceitos e teorias propostas por Sigmund Freud, o pai da Psicanálise.
Para Freud, os processos psíquicos são inconscientes em sua grande maioria e
apenas uma fração deles pertence a nossa consciência. O psicanalista tentou
explicar a mente humana tendo como base tendências sexuais, as quais chamou de
libido.
Em “A
Interpretação dos Sonhos”, Freud chegou a afirmar que o conteúdo de alguns de
nossos sonhos poderia ser um reflexo de nossos desejos oprimidos pela moral. Já
em “ Três Ensaios sobre a Sexualidade”, Freud buscou retratar as perversões
como atividades sexuais podem ou não se restringir aos órgãos genitais do
organismo humano. Isso pôde ser visto em diversas cenas em que Humbert abusou
de Dolores sem necessariamente haver sexo.
Ainda na última
obra mencionada no parágrafo anterior, Freud afirmou que a sexualidade da
criança é necessariamente perversa, mas que conforme ela cresce ocorre uma
organização dos pulsos sexuais, fazendo com que a perversão do indivíduo seja
dissolvida. Contudo, em algumas pessoas essa organização não ocorre, o que tem
o efeito de tornar as manifestações de perversão ainda presentes na vida
adulta. Humbert não franqueia ao leitor as possíveis causas da ausência de
organização de suas pulsões sexuais, mas dentre elas é possível inferir a perda
de sua mãe quando tinha apenas três anos de idade e a morte de Annabel, sua
primeira amada, pela febre tifoide.
Outro
pensador cujas ideias podem explicar as atitudes de Humbert é o escritor
francês Georges Bataille. Contudo, é preciso fazer uma ressalva: muitos dos
conceitos e teorias propostos por Bataille foram concebidos após a publicação
de “Lolita”, sugerindo que Nabokov não bebeu do pensador ao escrever a sua
obra.
À luz da
ótica psicanalítica, a transgressão representa um termo estigmatizado e
comumente associado à perversão. Já para Bataille, ela representa o imprevisto
e a possibilidade de sair da margem, do limite e do cálculo. Ainda de acordo
com Bataille, o desejo é implantado pelo erotismo, o qual é necessariamente
transgressor e inevitavelmente excessivo.
A volúpia, o desejo por ir além e o
excesso são vistos como transgressões. A transgressão pode ser vista em
diversos momentos da obra de Nabokov, tanto nos momentos em que Humbert abusa
de Lolita quanto em outros em que outro homem mais velho a persegue, fato que
motivou o crime cometido por Humbert. Outro exemplo de transgressão observada
em “Lolita” foi o casamento entre Humbert e Charlotte, mãe de Lolita, no qual
Humbert ultrapassou os limites do próprio matrimônio para manter Lolita próxima
de si.
Humbert não se entrega à transgressão
diante de qualquer circunstância. Contudo, quando ele não consegue oprimir
determinados desejos, seus impulsos transcendem os limites da moral. A
transgressão põe em evidência a perversão moral de Humbert e a sua obsessão por
Lolita.
Vladimir Nabokov é um russo que habitou diversos países até se estabelecer nos Estados Unidos. Neste, Nabokov foi muito bem recebido, tendo lecionado em diversas universidades, o que não teria sido possível sem a sua formação universitária extremamente consistente. Em contraste, Nabokov foi um ardente crítico do país.
Desde a sua publicação, há divergências de opiniões quanto à temática
central da obra. Alguns acreditam que seja o amor, outros que a pedofilia e,
para muitos, que sobre a obsessão de Humbert por Lolita. Há, também, a visão de
que “Lolita” seja uma metáfora sobre como a América com o seu consumismo e o
seu estilo de vida fútil foi degradada pela velha Eupora. Para essa visão, a
América é representada no livro por Lolita, enquanto a Europa é representada
por Humbert.
Esse não é o único tema geopolítico que pode ser analisado a partir da
leitura da obra. Atualmente, a naturalização da pedofilia ainda se faz presente
em diversos países do globo terrestre, e a forma como o tema foi abordado em
“Lolita”, bem como a influência da obra sobre a concepção dos padrões de beleza
que oprimem o gênero feminino contribuíram para a perpetuação desses problemas
em muitos países.
Em 2012, morreu no hospital de Nova Déli, na Índia, uma jovem indiana
vítima de estupro coletivo. No Camboja, país localizado no sudeste asiático, a
prostituição infantil tem acometido crianças cada vez mais novas. Em diversos
países afrianos, não há leis específicas que protejam crianças de abuso sexual,
o que explica o fato de em tenra idade muitas meninas serem obrigadas a se
prostituir. Devido ao mito de que relações sexuais com garotas virgens
protegem homens mais velhos da contaminação pelo HIV, causador da Aids,
estupros coletivos em crianças são comuns na África do Sul. Já na África
Subsaariana, 75% dos casos de Aids ocorrem em mulheres e meninas.
“Lolita” é uma obra que nos permite refletir sobre diversos temas.
Contudo, para que a análise não se estenda tanto, concluo por aqui as reflexões
que a obra suscita para falar sobre a escrita do autor. Isso, aliás, eu comecei
a fazer ao mesmo tempo em que falava sobre o enredo e sobre as reflexões que
ele despertou.
A linguagem do autor, é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores trunfos
da obra. Ela operou como a principal estratégia de Humbert para relativizar os
seus crimes e causar comoção nos leitores da época, o que não ocorre com o
mesmo sucesso nos leitores da atualidade, pelo menos no meu caso. Conforme já discutido, a temática da obra é
bem polêmica, e acredito que a polêmica teria sido muito maior caso Nabokov não
soubesse manejar a linguagem de forma a tornar a sua narrativa agradável mesmo
que chocante.
Humbert é sedutor, e a forma como ele narra os acontecimentos é capaz de persuadir um leitor desatento. Contudo, caso a obra seja lida com um maior grau de atenção, logo se percebe que a narrativa é extremamente parcial, e que a seleção dos fatos narrados visa conduzir a opinião do leitor ao perdão de Humbert. Essa condução não seria possível caso a seleção dos fatos narrados fosse empreendida pela própria Dolores, por Charlotte ou pelo homem que também a perseguia.
Apesar disso, a escrita de Nabokov é muito aprazível em “Lolita”, e isso se deve ao emprego de diversos mecanismos. Um deles é o de narrar os acontecimentos da obra a partir de uma linguagem poética e ornamentada com floreios, os quais agradam o leitor e atenuam o espanto que cenas de cunho erótico normalmente causam. Outro é o fato de Nabokov não se alongar em demasia na descrição dos ambientes e personagens.
Para descrever a personalidade dos personagens, Nabokov permite que o
leitor infira as suas características a partir da narrativa dos acontecimentos.
Há genialidade nessa fusão das funções descritiva e narrativa da linguagem por
parte de Nabokov na concepção de “Lolita”. Outro recurso empregado é o de
dialogar com o leitor em determinados momentos, o que tem o efeito de prender a
sua atenção e estimular o seguimento da leitura.
Há um jogo entre passado e presente que permite ao leitor não apenas
compreender as características psicológicas dos personagens, mas como ocorreu a formação de
alguns de seus aspectos ou, em última análise, fornece subsídios para a criação hipóteses sobre outros
aspectos da personalidade à luz dos diversos ramos do conhecimento que existem. A aquisição de
conhecimentos de diversas áreas foi fundamental para Nabokov, e explica outras
virtudes da obra, tendo em vista que a ciência produziu uma quantidade absurda
de conhecimentos e saber selecionar uma fração deles e abordá-los no próprio
enredo é uma tarefa que não pode ser designada a qualquer ser humano.
Nabokov rejeitava as teorias propostas por Freud, apesar de que algumas
delas podem explicar a personalidade de seus personagens. Nabokov se valeu de
conhecimentos na área da Psicanálise, História e Direito para urdir a narrativa
de “Lolita”. No prefácio da edição que eu li, é dito que a obra tende a se
tornar um clássico nos círculos psiquiátricos.
Ao longo dessa análise e resenha crítica eu mencionei diversos
acontecimentos do enredo de “Lolita”, tendo o cuidado de não revelar detalhes
que comprometem a qualidade de sua leitura. Preservando esse cuidado, relevarei
duas curiosidades enunciadas durante a própria narrativa. O enredo é repleto de
pseudônimos, estando neles incluso o próprio Humbert Humbert. Ainda no
prefácio, o leitor se depara com a informação de que o sobrenome “Haze” apenas
rima com o verdadeiro sobrenome de Dolores e Charlotte.
Indico Lolita não somente a quem possui gosto pela leitura, mas quem deseja vir a desenvolvê-lo. A obra possui diversas virtudes, dentre as quais o leitor percebe facilmente que a escrita é uma delas. Devido ao conteúdo erótico, contraindico a obra a crianças. Mas quem empreendê-la certamente não se arrependerá, pois poderá refletir sobre diversas questões. A conclusão da leitura da obra foi um marco para mim, fazendo com que o meu gosto literário fosse apurado. A partir de então sei que não será qualquer autor que conseguirá me satisfazer. Por esses motivos, não há como não atribuir a nota máxima ao romance de Nabokov.
Autor da análise e resenha: Felipe Germano Monteiro Leite
Ficha técnica | Lolita
Título: Lolita
Título original: Lolita
Autor: Vladimir Nabokov
Editora: Companhia de Bolso
Número de Páginas: 376
Ano de Publicação: 1955
Nota: 10/10
Felipe, Parabéns pela resenha ...simplesmente uma leitura gostosa e envolvente...as entrelinhas poéticas me traem
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