[Resenha] Viagem ao Centro da Terra – Júlio Verne
A obra “Viagem ao Centro da Terra”,
concebida pelo escritor francês Júlio Verne, foi lançada no ano de 1864, ano em
que criar uma narrativa ambientada em um universo utópico e fazer com o leitor
seja nele imerso era uma rara habilidade compartilhada por poucos escritores. O
enredo da obra é iniciado a partir do momento em que Otto Lidenbrock ,
cientista que reunia a visão de um mineralogista ao gênio de um geólogo, chega
a seu lar após uma viagem.
Lidenbrock é recebido pela sua secretária
Marthe, que mostra preocupação em relação ao jantar do cientista. Em seguida,
ele conversa com Axel, narrador da história e seu sobrinho. Axel tinha o seu
tio como mestre, o qual lhe incutiu o gosto pela leitura e pela ciência. Além
de cientista, Lidenbrock também era professor, lecionando Mineralogia em
Johanneun, escola tradicional da Alemanha.
A relação entre Lidenbrock e Axel era
marcada por um tratamento áspero, apesar de que Lidenbrock o amasse
verdadeiramente. Marthe serve o jantar e, após realizarem a refeição, Axel e
Lidenbrock vão ao gabinete do professor, no qual tornam a decifrar um
manuscrito de Arne Saknussemm, um alquimista islandês. Lidenbrock era poliglota
e teria maior facilidade em decifrar o manuscrito, mas pediu para Axel, que não
era tão fluente em outros idiomas, iniciar a tarefa por conta própria. O
manuscrito descrevia como Saknussemm realizara a façanha de chegar ao centro da
Terra descendo a cratera do vulcão Snefells, localizado na Islândia.
Embora o termo “ficção científica” tenha
surgido somente em 1929, diversos autores plantaram séculos antes as sementes
que viriam a frutificar as bases do gênero literário. Dentre eles, podemos
citar o italiano Ludovico Ariosto, que em “Orlando Furioso”, obra publicada em
1532, narrou a viagem do homem à lua, feito realizado pelo próprio homem
séculos depois. No século XIX, a ciência
tal como compreendemos hoje obteve um curso cultural generalizado e, nesse
contexto, surgiu a Literatura de ficção científica.
Foi nesse cenário que Júlio Verne
nasceu na cidade francesa de Nantes no dia 8 de fevereiro de 1828. Um dos
principais objetivos dos seus pais em educa-lo foi o de encaminhar Verne na
carreira do ramo do Direito, a qual era seguida pelo seu pai. Em 1846, com
vistas a agrada-lo, Verne passa a estudar Direito na cidade de Nantes.
Nela, Verne sofre de uma desilusão
amorosa e, para fazer as provas da faculdade e se afastar da cidade, se muda
para Paris em 1847, onde passou a frequentar salões de Literatura. Verne buscou
conciliar o seu amor pela leitura com os estudos de Direito. Em Paris, Verne estabeleceu laços de amizade
com diversos escritores e, em 1852, optou por abandonar o curso de Direito para
se dedicar integralmente à Literatura.
Na época em que iniciou a sua carreira
de escritor, há pouco ocorrera a configuração do método científico e a
emergência de diversas descobertas e teorias científicas, além de uma profusão
de invenções que trouxeram maior comodidade à humanidade. Também foi naquela
época que tivera início a corrida armamentista, o movimento expansionista e a
primeira grande crise no modo de produção que denominamos Capitalismo. Esse contexto
histórico influenciou fortemente o conteúdo abordado nas obras literárias.
Em “Viagem ao Centro da Terra”, o
espírito de aventura, a sede pelo desbravamento de novas regiões, a busca por
exotismos e a linguagem científica fizeram-se presentes. Esses elementos
serviram de impulso ao expansionismo europeu. Embora o desequilíbrio entre
esses elementos tenha grande potencial de tornar uma história maçante, tediosa
e sem dinamismo, não foram essas as impressões que eu tive ao lê-la, e acredito
que você, leitor desta resenha e análise, também não caso decida mergulhar na
leitura da obra.
Verne inicia a narrativa construindo,
pausadamente, os personagens e as suas características físicas e psicológicas
para em seguida inseri-los em grandes aventuras, as quais são narradas com
menor vagar. A descrição dos ambientes é relativamente extensa, mas não a ponto
de comprometer a dinâmica da narrativa, mas tornando-a verossímil, além de
permitir a imersão da imaginação do leitor na história. Contudo, as descrições
mais extensas de Verne são a respeito das características psicológicas dos
personagens principais, o que tem o efeito de torna-los complexos e reais.
Embora o emprego de termos científicos
e de palavras de significado raro geralmente represente um obstáculo à fluidez
de uma narrativa, Verne consegue utiliza-lo como um recurso de apreensão da
atenção do leitor e sua respectiva imersão no universo que ambienta a história.
Transformar veneno em remédio na Literatura é um talento raro, especialmente ao
se ter em consideração o fato de que a obra fora concebida ainda na segunda
metade do século XIX.
Após deixar Axel tentando decifrar o
manuscrito que Lidenbrock trouxe da Islândia, o professor retorna e ajuda Axel
na tarefa. Juntos, obtêm sucesso. Lidenbrock propõe a Axel a realização da
viagem que os levaria ao centro da Terra, algo que Axel não tinha certeza de
que valia a pena. Lidenbrock começa a arrumar as suas malas e Axel reflete
sobre participar ou não da viagem. Ele tem uma discussão com a sua noiva,
Graüben, e acaba decidindo partir com o seu tio, indo arrumar as suas malas
logo em seguida.
A narrativa é iniciada por uma
construção morosa dos personagens e é sucedida pelo início das aventuras, narradas
com maior fluidez e dinamismo. Embora “Viagem Ao Centro da Terra” seja um
clássico da Literatura, a sua leitura é bastante agradável e dinâmica,
diferente de vários outros clássicos, os quais atualmente dissuadem o
empreendimento da leitura por muitos leitores, os quais são habituados a
procurar livros sem dificuldades de compreensão e com maior dinamismo na
narrativa.
Quem não cultiva o hábito de ler
os clássicos da Literatura poderá encontrar em “Viagem ao Centro da Terra” um
estímulo para desenvolvê-lo. Um dos
recursos empregados por Verne para prover a narrativa de dinamismo é a inserção
de momentos de humor, os quais divertem o leitor em meio ao emprego de palavras
rebuscadas e termos técnicos e à apresentação de conceitos científicos com os
quais não é familiarizado. Outro recurso que contribuiu para o dinamismo da obra
foi o equilíbrio entre o uso desses conceitos científicos e o de sua inserção
em cenas de aventura puramente ficcionais.
Apesar de empregar diversos
recursos para tornar a história dinâmica e prender a atenção do leitor, em
alguns poucos momentos da obra a narrativa se tornou cansativa. Enriquecer uma
história com extensas descrições e com a narração dos eventos relacionados aos
seus acontecimentos principais tem o efeito de torna-la mais complexa, mas
quando ocorre um detalhamento excessivo de alguns ambientes ou de
acontecimentos que não interferem no seu curso, a leitura se torna
maçante. Isso chegou a ocorrer em
“Viagem ao Centro da Terra”, mas em momentos excepcionais, e não em sua
maioria.
Em meio à narração de eventos com
pouca contribuição ao desenvolvimento do enredo, encontramos a abordagem de
pontos importantes não apenas para o desfecho da obra, mas para a sociedade da
época em que foi lançada e alguns até para a contemporaneidade. Axel e
Lindenbrock partem de Hamburgo, cidade alemã, em direção à Islândia. Após
chegarem ao destino, iniciam o percurso em direção ao início da viagem ao
centro da Terra, tendo o auxílio de Hans, um guia, para atingir esse fim.
Após darem início ao caminho,
são defrontados por diversos obstáculos e se envolvem em diversas aventuras.
Alguns desses obstáculos e aventuras que as personagens atravessaram puseram em
evidência a extrema capacidade do ser humano de se adaptar às adversidades que
o sobrevém. Também puseram em discussão problemas sociais enfrentados pela
sociedade da época, além de discussões científicas.
Em determinada passagem da
obra, Lidenbrock, Axel e Hans encontram no caminho rumo ao centro da Terra um
indivíduo portador de hanseníase, o que lhes causa grande apreensão. Na época
em que “Viagem ao Centro da Terra” foi publicado, o agente causador da hanseníase
ainda não tivera a sua descoberta, a qual só viera a ocorrer no ano de 1873,
quase uma década depois, pelo médico norueguês Gerard Armauer Hansen. Na época
da publicação da obra, os métodos de diagnóstico e tratamento da hanseníase
atualmente conhecidos ainda não estavam disponíveis, o que trazia grande
desconforto aos seus portadores, os quais padeciam dos sintomas da doença e
ainda eram vítimas de discriminação perante a sociedade.
A hanseníase na época era
chamada de lepra, e atualmente há discussões sobre a sua origem ter ocorrido ou
na Ásia ou na África. Séculos depois, já na Idade Média, vigorava uma crença de
que a hanseníase era uma doença cujos infelizes portadores eram pobres em
Cristo. Nesse período, os portadores de hanseníase eram condenados ao
isolamento social e chegavam a sofrer mais moral do que fisicamente, sendo-lhes
atribuído, frequentemente, um caráter pecaminoso.
No período histórico em que
“Viagem ao Centro da Terra” viera à luz, pacientes portadores de hanseníase
ainda sofriam de discriminações, vivendo em meio a diversas regras sociais, como
a de usar roupas especiais e, em alguns países, terem sinais expostos em forma
de mão ou de “L”. Os doentes também estavam proibidos de se alimentarem ou
dormirem na companhia de pessoas sadias. Na obra, o próprio Júlio Verne chega a
empregar o termo “leproso” para designar o portador de lepra que aparecera no
caminho de Lidenbrock e Axel, um termo que é, atualmente, considerado como
impregnado de viés discriminatório.
Em outro momento da obra,
dessa vez antes de começarem a percorrer o caminho descrito por Saknussemm rumo
ao centro da Terra, Lidenbrock e Axel discutiram sobre uma teoria existente à
época a respeito da composição do centro da Terra. As primeiras noções a respeito da formação da
Terra, na Europa, foram fruto de interpretações bíblicas. Contudo, isso não
impossibilitou que durante a própria Idade Média surgissem teorias
alternativas.
Atualmente, sabemos que o
núcleo terrestre possui uma parte externa fluida e uma parte interna sólida. O
núcleo externo é constituído majoritariamente por ferro e níquel. O núcleo
interno possui uma composição similar à do núcleo externo, também contendo
enxofre, silício e oxigênio. No núcleo terrestre, ocorrem correntes de
convecção que estão associadas a diversos processos geodinâmicos.
Em contrapartida, na
época do lançamento de “Viagem ao Centro da Terra”, muitos dos métodos
geofísicos envolvidos na descoberta da composição do interior do planeta ainda
não foram desenvolvidos. Além disso, diversas teorias geológicas só chegaram a
ser formuladas no século XX, a exemplo da teoria da Deriva Continental,
proposta por Alfred Verner em 1912, quando tinha apenas 32 anos de idade. Assim
mesmo, em “Viagem ao Centro da Terra”, diversos conceitos geológicos e teorias
à época não comprovados foram abordados por Júlio Verne, o qual soube tanto equilibrar
bem ficção e ciência quanto tornar o enredo da obra interessante ao leitor.
Buscando manter esse
equilíbrio, em “Viagem ao Centro da Terra”, Verne aborda em algumas passagens a
respeito do o que sabia sobre o vulcanismo, rochas magmáticas e metamórficas
bem como sobre a sua formação e sobre a importância dos fósseis na construção
de ambientes já existentes. Ele o faz dentro do próprio enredo, fazendo com que
o leitor aprenda e se divirta simultaneamente. Muitas das teorias que vigoravam
a época foram substituídas com o tempo, o que explica o fato de questões
abordadas no livro possuírem explicações diferentes das que existem atualmente.
Enquanto eu era estudante de Geografia
no Ensino Fundamental, foram ministrados diversos conceitos e teorias
geológicas. No Ensino Médio, o assunto foi visto novamente no Terceiro Ano. À
época, era um assunto considerado tedioso pela maioria dos meus colegas de
classe. Um dos fatores que tornaram o seu estudo um enfado foi a pouca
familiaridade com os termos específicos da área e a ausência do interesse dos
autores dos livros didáticos em tornar interessante a abordagem do tema.
“Viagem ao Centro da Terra”
oferece-nos uma abordagem mais interessante dos conceitos geológicos, apesar de
muitos haverem sido reformulados posteriormente. Além disso, pessoas que a leem
têm a apreensão do significado de vários termos do jargão geológico, passando a
ver os assuntos relativos à Geologia com outro olhar. O estudante que procurar
conhecer a obra certamente deixaria de enxergar assuntos geológicos com um olhar
desinteressado, o que facilitaria a abstração dos conhecimentos presentes nos
livros didáticos. Eis uma das muitas virtudes do livro.
Com o objetivo de não
prejudicar o prazer que o leitor poderá obter com a leitura do livro, não
emitirei mais informações a respeito dos desdobramentos do seu enredo, nem a
respeito de Lidenbrock e Axel granjearem ou não sucesso com a empreitada.
“Viagem ao Centro da Terra” possui uma história que certamente entreterá o seu
leitor, bem como propiciará bons momentos de humor. Nela, o autor consegue usar
como bons aliados na construção do enredo diversos elementos que na maioria das
vezes provocam desinteresse no leitor quando não são bem empregados.
A obra pode ser
indicada a leitores de todos os gêneros da Literatura. Quem é habituado a ler
clássicos não enfrentará dificuldades no seu entendimento. Quem não o é,
provavelmente também não, e nela poderá encontrar um fomento para desenvolver o
hábito de ler livros mais complexos. Pessoas com a vida acadêmica corrida
poderão se entreter e, concomitantemente, refletir sobre questões pertinentes à
ciência e à sociedade. Quem deseja relaxar, por sua vez, poderá fazê-lo sem ter
a discussão de conceitos científicos como um obstáculo, mas como uma forma
distinta e prazerosa de aprender coisas novas.
Autor da resenha: Felipe Germano Monteiro Leite
- Título: Viagem ao Centro da Terra
- Autor: Jules Verne
- Capa dura: 240 páginas
- Editora: Clássicos Zahar; Edição: Edição comentada e ilustrada (14 de abril de 2016)
- Idioma: Português
- Nota: 10/10
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